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Entrevista com André Porciuncula

Aversão à nova Lei Rouanet é mais espiritual que política, diz secretário de Incentivo à Cultura

andré porciuncula
O secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciuncula. (Foto: Reprodução/YouTube)

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A secretaria de Cultura, órgão do Ministério do Turismo, tem sido um dos principais alvos de ataques de opositores desde o início do governo Bolsonaro, com polêmicas que chegaram a resultar na exoneração dos ex-secretários Roberto Alvim e Regina Duarte.

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Sob a gestão de Mario Frias, nos últimos meses, as críticas deixaram de se dirigir somente ao chefe da pasta e passaram a atingir seu braço direito, o secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciuncula.

Nas últimas semanas, Porciuncula virou o centro das atenções especialmente por causa do decreto de Jair Bolsonaro que modificou a Lei Rouanet. Em entrevista à Gazeta do Povo, o secretário diz que algumas críticas feitas a detalhes do decreto, como a ideia de revalorização da arte sacra, acabaram tirando o foco do principal objetivo do documento: a desburocratização.

“O grande mérito do decreto é desburocratizar o processo de aprovação dos projetos, deixar a coisa mais redonda, mais agilizada, de uma forma mais transparente. Pouco se está falando nisso”, afirma. Para ele, o motivo das críticas relacionadas à arte sacra é uma “aversão quase patológica às expressões artísticas que tenham relação com Deus”. “É muito mais uma revolta espiritual, antes de tudo, do que de fato uma revolta política”, diz.

Capitão da Polícia Militar da Bahia, Porciuncula ganhou proeminência especialmente depois que o próprio Frias direcionou holofotes a ele nas redes sociais e começou a chamá-lo publicamente de “Capitão Cultura”. Recentemente, quando algumas reportagens insinuaram que o ex-policial estaria ofuscando o chefe na pasta, os dois trocaram mensagens de apoio via Twitter.

“Vocês não vão conseguir gerar intrigas entre mim e o Mario, não só o respeito como meu chefe, mas como meu amigo”, afirmou Porciuncula. “O orgulho e a honra são minhas, irmão. Meu amigo de fé e de luta. Não espero que entendam esse sentimento nobre que nos une. Deus te abençoe mais e sempre!”, respondeu Frias.

Confira a entrevista com André Porciuncula na íntegra:

O que o sr. achou das reações negativas à presença da arte sacra como segmento no decreto que modifica a Lei Rouanet?

André Porciuncula: O patrimônio cultural em termos de arte sacra é riquíssimo. A decisão é racional dado o tamanho do acervo sacro no Brasil. Sobre as reações, atribuo isso a, como o presidente [Bolsonaro] fala, uma “cristofobia”, e a uma agressiva aversão a tudo o que venha de Deus – um pouco do que o [filósofo Eric] Voegelin chamava de “revolta egofânica”, a revolta do ego contra Deus.

Esses indivíduos têm uma aversão quase patológica às expressões artísticas que tenham relação com Deus. Eu acho que é muito mais uma revolta espiritual, antes de tudo, do que de fato uma revolta política. E isso acaba se transmutando dentro da ação política, mas é essencialmente uma revolta espiritual.

Quais foram as modificações mais importantes do decreto?

André Porciuncula: A gente tirou gargalos burocráticos que eram terríveis, que geravam dificuldades na aprovação de projetos. Quando você retira o máximo possível esses gargalos burocráticos, o que a gente faz é, primeiro, tornar o processo mais transparente, mais fluido, e inviabilizar pontos de possíveis elementos de corrupção.

O grande mérito do decreto é desburocratizar o processo de aprovação dos projetos, deixar a coisa mais redonda, mais agilizada, de uma forma mais transparente. Pouco se está falando nisso. Para alguns, era interessante o gargalo burocrático, porque você gerava dificuldades, inclusive para novos projetos. Isso tornava as pessoas iniciantes quase incapazes de fazer ações culturais, porque não tinham acesso a todos esses grandes esquemas jurídicos, administrativos e operacionais que as grandes empresas que antes concentravam a maior parte dos recursos da Lei Rouanet detinham.

O decreto também permite mudanças no caráter de contrapartida social, que é algo em que a gente vem batendo muito. Se o financiamento é público, a gente tem que exigir mais contrapartida social, inclusive contrapartidas para descentralização, trazer novas pessoas, artistas iniciantes, pequenos produtores, acabar com os grandes cachês… Tudo isso vai ser reformulado através do decreto. A gente está trazendo uma nova instrução normativa que vai permitir regulamentar isso.

O que já se sabe sobre o mau uso de verbas públicas da cultura em gestões anteriores?

André Porciuncula: A gente não sabe se teve ou não uso indevido [do dinheiro público], porque as antigas gestões nunca se preocuparam em fazer auditoria. É algo até engraçado que a Comissão de Cultura fale que não há histórico de desvio na Lei Rouanet… É óbvio que não há histórico de desvio. Não há histórico de auditoria. Nunca auditaram as contas.

Tenho um passivo de R$ 13 bilhões, 20 mil projetos, mais de 5 milhões de páginas. E quando eu falo que não houve auditoria, não é só questão financeira. É se o projeto de fato aconteceu, se o objeto que ele se propôs a fazer foi de fato entregue. A gente não sabe nem se esse dinheiro foi realmente alocado em ações culturais. Um dos grandes processos que nós estamos fazendo aqui é tentar resolver esse problema de auditoria.

Como foi a reunião da secretaria de Cultura com ministros do G20?

André Porciuncula: É um palco para a gente debater as políticas públicas e cada país demonstrar o seu compromisso com a cultura. Foi uma participação importante e bastante emblemática. O Mario [Frias, secretário de Cultura,] focou muito na ideia de devolver o protagonismo da cultura ao homem comum, tirar a cultura do palanque político, desse sequestro de décadas da cultura, da sua instrumentalização como meio de ação revolucionária, e devolver ela aos valores comuns do nosso cotidiano, das pequenas praças, das pequenas vilas, no interior, nas pequenas cidadezinhas espalhadas pelo que a gente chama de ‘Brasil profundo’.

Ele fincou essa bandeira muito forte do governo Bolsonaro da cultura do homem comum, das nossas tradições milenares, dos valores atemporais, e ressaltou que não se faz cultura com gordas verbas públicas. Isso é arrogância. Milênios de civilização humana não foram construídos com verba pública. Foram construídos com amor, uma paixão fervilhante, pela cultura. A função do Estado é tutelar isso. Não é produzir cultura. Não é revolucionar a sociedade e os valores da sociedade, modificar a cultura da sociedade. Nada disso. O Estado não é um editor da sociedade. Não está aqui para escolher como a sociedade vai se comportar ou não. O Estado está ali para tutelar os valores atemporais dessa sociedade. Somos servidores, de fato.

Como a secretaria da Cultura viu o atentado à estátua de Borba Gato?

André Porciuncula: O atentado foi terrível, um crime abominável, sério, que ainda põe em risco as demais pessoas, porque aquilo pode queimar uma casa, um edifício. Poderiam matar outras pessoas, colocaram em risco a vida de outras pessoas. Não só destruíram um patrimônio cultural, com todos os símbolos que envolvem esse patrimônio, como expuseram ao risco de morte a população que reside naquele ambiente ou as pessoas que estavam passando por ali.

Foi um absurdo. Essa mesma elite sindical - que se arvora o título de dirigente da cultura nacional - estava aplaudindo esse tipo de vandalismo, achando bonito o que essas pessoas fizeram. Isso nada mais é do que instrumentalização da ação revolucionária, tentativa de apagar nossos valores históricos e culturais, de apagar o passado, bem ao estilo de “1984”: controle o passado para manter o controle sobre o presente; modifique todas as datas históricas, modifique todos os processos, símbolos e marcos. Isso é o que eles almejam.

Infelizmente, esse tipo de coisa foge um pouco à nossa esfera porque demanda uma ação policial mesmo. Fez muito bem a Justiça em deixar presos os responsáveis por isso.

Recentemente, a secretaria foi criticada por um suposto atraso no planejamento para o bicentenário da Independência. O que aconteceu?

André Porciuncula: É uma bobagem sem tamanho. Primeiro que o bicentenário da Independência é no ano que vem. Quanto ao planejamento orçamentário, aqui não é iniciativa privada, então quem fala não tem a menor noção de como funciona a burocracia.

Todo planejamento envolve destinação de orçamento, análise, programa, projeto, reuniões, verificação dos requisitos legais. Isso está sendo feito desde o ano passado. Acabou de ser lançado um edital de R$ 30 milhões. Edital histórico, só para a questão audiovisual, com a temática do bicentenário. Nunca antes se tratou da Independência. Nunca se aplicou dinheiro nesse montante para falar sobre a temática da Independência. São R$ 30 milhões voltados à produção audiovisual, para a reconstrução do imaginário público.

Até anunciaram que nós teríamos reagido a uma crítica e por isso lançamos um edital de R$ 30 milhões em dois dias. Isso é não ter a mínima compreensão dos requisitos burocráticos para se lançar um edital de R$ 30 milhões. É impossível lançar isso em dois dias, uma semana ou um mês. Isso exige preparação de alguns meses.

O cineasta Josias Téofilo criticou o atraso da secretaria da Cultura em promover ações para o bicentenário da Independência. Vocês são amigos? Houve algum conflito?

André Porciuncula: Não teve confronto. Nunca o encontrei, nunca foi meu amigo. Tudo que eu conheço dele é por ele ter feito o filme sobre o Olavo [de Carvalho]. A crítica dele é uma crítica vazia, de quem não entende da burocracia do governo. Ele é um artista e não entende nada dos aspectos burocráticos da administração. Nunca entendeu de legislação pública e aí acaba fazendo críticas infundadas.

O que acha das críticas sobre a secretaria ser reacionária e não investir em inovações culturais?

André Porciuncula: Nunca fui um entusiasta da ideia do novo pelo novo ser, por si só, algo bom. Nunca achei que algo era bom porque era novo. Nunca fui um fanático do progresso. O progresso, por si só, não é bom. Você pode estar na frente do penhasco, dar um passo para frente e cair. Isso é progresso, e não necessariamente resultado positivo.

Essa neurose revolucionária de que precisamos sempre renovar, renovar… Temos uma herança cultural riquíssima, homens melhores do que eu… Eu não me arvoro a ser melhor do que os grandes clássicos de nossa cultura, melhor do que Machado de Assis, Gustavo Corção… Esse processo de revalorização da estrutura de valores da nossa cultura merece reconhecimento.

O segundo ponto é que eu não acho que caiba a nós, secretaria de Cultura, produzir absolutamente nada em termos de cultura. Somos um órgão de Estado. Eu não estou aqui para fazer a Capela Sistina, até porque não tenho habilidade para isso.

Meu papel é administrar os mecanismos públicos para tutelar os bens culturais e entregar à população. Nesse aspecto, nada obsta que um artista moderno tenha um bom trabalho e seja financiado, também. Acontece o tempo todo, financiamento de artistas contemporâneos com incentivo tributário. Mas eu tenho uma admiração por toda a história de nossa civilização, não sou um arrogante inovador. Estou muito satisfeito no meu lugar de homem comum, admirando todos estes homens maiores que vieram antes de mim.

Que legados a atual gestão da secretaria da Cultura quer deixar?

André Porciuncula: Acredito que o legado de moralização da pasta não pode ser revertido. Modificamos muitas estruturas, decretos, normas internas. É um pouco difícil que outro tipo de gestão modifique essa entrega já produzida.

O grande legado nosso é justamente essa moralização dos mecanismos públicos e a mudança de paradigma. A secretaria de Cultura deixou de ser uma estrutura de sindicato de classe, e transformamos ela num órgão de governo voltado ao povo. Essa mudança de paradigma quebrou uma década de aparelhamento ideológico dos mecanismos de fomento público da cultura.

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