Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Violência

“Novembro negro” na Vila das Torres

“Cadê a sociedade numa hora dessas?”, pergunta a conselheira tutelar Maurina Carvalho, que atua na Vila das Torres | Albari Rosa / Gazeta do Povo
“Cadê a sociedade numa hora dessas?”, pergunta a conselheira tutelar Maurina Carvalho, que atua na Vila das Torres (Foto: Albari Rosa / Gazeta do Povo)
Adílson da ONG: crimes aumentam isolamento da comunidade |

1 de 1

Adílson da ONG: crimes aumentam isolamento da comunidade

Os moradores da Vila das Torres – a mais antiga zona favelizada de Curitiba – gostam de repetir que "já viram de tudo nessa vida". Iniciada na década de 1950, como uma rebarba da mítica favela do Capanema – onde está hoje o Jardim Botânico – a comunidade tem expertise, como se diz. É escolada, da queima de pneus para fechar a avenida às iniciativas cidadãs, a exemplo do Clube de Mães. A Torres é sinônimo de comunidade popular organizada, uma Portelinha das araucárias.

Nas duas últimas semanas, contudo, os aproximados 4,5 mil moradores da região – 30% deles com menos de 18 anos – mudaram o discurso: "Nunca vimos nada igual", lamentam, ao falar das duas crianças mortas e uma ferida entre os dias 2 e 8 de novembro. Execução, bala perdida, vingança – os motivos dos crimes estão sob investigação. O que não resta dúvida é que têm a ver com o tráfico de drogas. E que os traficantes passaram da medida ao alvejar os pequenos, instalando o medo em escala industrial. O passo que falta para instalar a barbárie total seria a intimidação à escola e ao sistema de saúde. Se o tráfico minar de vez a presença do poder público, a vila terá sido dominada.

"Quer saber de quem é a culpa? Está ali, naquela ruazinha, onde os estudantes da PUC vão comprar droga. São eles os culpados por essa violência toda", aponta um jovem vileiro, ao atravessar a ponte do Rio Belém. Ela fala rápido, para não ser percebido pelos olheiros. "Tá feio, né", aborda outro rapaz, em bons trajes. "Todo mundo sabe que essa é uma guerra entre os policiais e os traficantes. A PM cobra do tráfico, e caro... Propina. Quanto tempo isso vai durar?" Circular pelas Torres é ouvir recados e receber bilhetes de todos os lados – sempre debaixo do anonimato.

Relação delicada

Diz-se que nos últimos anos o tráfico caiu nas mãos de jovens, alguns recém-saídos da adolescência, quais figurantes do filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. A violência, ali, se tornou uma "questão etária". Com os "cabeças" presos, coube a esses meninos controlar as bocas de fumo. Intempestivos, aplicam um novo "modelo de negócio", de modo a compensar a falta de experiência. Têm trocado os pés pelas mãos.

Desconsideram que perdem força ao amedrontar os moradores, criando linhas proibidas, impedindo a circulação entre os dois lados da "Faixa de Gaza", a Rua Guabirotuba. Esquecem que atingir crianças não tem perdão. Que intimidar professores, médicos e assistentes sociais não faz parte do protocolo nem mesmo da mais informal das aldeias da Nigéria. Na base do que os especialistas chamariam de "quebra de paradigmas", estaria o mais grave dos problemas – as relações perigosas entre forças de segurança e contraventores. Relacionam-se na base dos "tapas e beijos". Nas duas últimas semanas, estariam aos "tapas". Sabe-se quem pagou a conta.

Se a intenção dos traficantes era apavorar a comunidade, conseguiram. A popular Rua Manoel Martins de Abreu – espécie de centro nervoso da vila – anda às moscas desde que o menino Cahuê da Cruz, 7 anos, foi assassinado, em pleno Dia de Finados. Até os "noiados" sumiram. Tudo indica que o crime é parte de um acerto de contas. "Problema deles, não nosso", como se fala por lá, em momentos de tensão. A diferença agora é que essa explicação não consola ninguém. A rotina dos guris e gurias da comunidade ficou marcada pelo "novembro negro". E essa é a questão.

"É muito recente", replicam os entrevistados – ligados aos setores educacionais, assistência e pesquisa –, quando perguntados sobre como as crianças reagem diante de coleguinhas mortos e atingidos. Não há consenso (leia nesta página). Para muitos, a naturalidade com que os crimes são vistos – raro na vila quem nunca tenha se deparado com um corpo estendido no chão – tende a ser aplicada ao infanticídio da última semana. Há inclusive uma aura de silêncio em torno dos três casos, que são pouco comentados no recreio e nas salas de aula. "Ignorar" pode ser uma defesa psicológica, um analgésico. Será?

Contra esse argumento, há quem lembre que as mães mudaram de comportamento depois das mortes – e não há filho que passe impune por uma mãe alterada. Não usam de meias palavras quando falam de morte, medo e pânico. Deixam de levá-los à escola. Restringem o uso da rua – "a vila não tem área de lazer; eles brincam do portão para fora. Brincavam...", observa a conselheira tutelar Maurina Carvalho da Silva, 57 anos, 40 deles passados na Torres.

"O funcionamento do setor de ensino mudou de forma drástica. Se afetou os alunos? Claro", reforça uma profissional de educação. Ela não quer seu nome divulgado. E explica: mães amedrontadas estão criando um passivo de evasão escolar. Antes das duas mortes, professores já eram obrigados a obedecer os toques de recolher. Agora, não sabem que horas as aulas vão acabar. "Três da tarde, do nada, a família aparece na porta do colégio porque ouviu dizer que vai ter tiroteio na vila. As regras foram rompidas. A escola foi atingida. O que mais vai acontecer?", provoca.

Cenas de uma tragédia

No cotidiano, crianças reproduzem seus temores

Conto de fadas

Depois dos crimes ocorridos no dia 2 e 8 de novembro, na Vila das Torres, criança participante de projeto social recontou a história dos Três Porquinhos sob a ótica dos assassinatos. A "versão" sanguinária da história de Cícero, Heitor e Prático – às voltas com o Lobo Mau – trazia uma fuga alucinada e tiros. "Os guris não se enxergam na crônica policial. Mas temem morrer por tiros", conta a conselheira tutelar Maurina Carvalho da Silva. Teve outra prova disso numa noite dessas. O neto de 11 anos lhe perguntou: "Vó, será que vão me matar também?"

Brincadeira de vilão

Parecia uma tarde como tantas no Centro Social Marista Irmã Eunice Benato, na Vila das Torres, quando a assistente social Adriana Matias, 43 anos, flagrou uma cena "quase inocente". Uma das 390 crianças e adolescentes ligadas ao programa ditou para os coleguinhas a frase "mãos na parede". Adriana presencia também o susto que levam a cada barulho banal. "Pensam que é tiro. Acho triste."

Super-heróis

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.