O relatório do anteprojeto do novo Código Civil, prestes a tramitar no Senado, traz muitas mudanças em relação à forma como os animais são reconhecidos e tratados juridicamente. As novidades podem abrir caminho, na visão de juristas, para tornar as chamadas "famílias multiespécie" uma realidade no Direito brasileiro.
Os animais ganham pela primeira vez uma seção inteira dentro do Código Civil, no livro II, que trata dos bens. O art. 91-A estabelece os animais como "objetos de direito", reconhecendo-os como "seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria".
Além disso, a proposta enfatiza a relação afetiva entre humanos e animais, levantando a possibilidade de reivindicação de danos por aqueles que se sentirem prejudicados pela perda ou sofrimento de animais com os quais mantêm um vínculo afetivo. O texto diz:
Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão reparatória por danos experimentados por aqueles que desfrutam de sua companhia.
Dentro do contexto das famílias, a proposta para o novo Código Civil estabelece que tanto no casamento quanto na união estável há a obrigatoriedade de compartilhar as despesas relacionadas aos animais de estimação. Isso se aplica não apenas durante a relação, mas também em caso de dissolução do casamento ou da união estável, com a divisão de despesas e encargos com os animais após o término do relacionamento.
Para a advogada e consultora jurídica Katia Magalhães, há sinais, no relatório do anteprojeto, de uma analogia perigosa entre animais de estimação e filhos. "Vejo de forma muito clara que estão tentando fazer uma comparação entre os pets e a prole menor [filhos menores de idade]. Haveria toda uma reestruturação processual, porque hoje um pet não tem personalidade jurídica – pelo menos não até o momento –, e não tem capacidade de ir a juízo; a prevalecer esse novo entendimento para o Código Civil, dando personalidade jurídica aos pets, eles se fariam representar pelo seu humano tutor, e aí requeririam danos em nome dele. Seria mais uma aberração jurídica", comenta.
Para ela, a extrapolação desses novos princípios poderia ocasionar não só a normalização progressiva do conceito de família multiespécie, mas também, "no auge, a abertura para a possibilidade de um matrimônio interespécie".
Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP, ressalta que a lei atual já contempla a reparação em caso de danos a animais de estimação e que a proposta de mudança é "mais um exemplo de 'engenharia social' por parte daqueles que creem que a sociedade e suas instituições podem ser feitas e desfeitas ao bel-prazer dos ideólogos".
Ele concorda que um possível efeito da lei em questão seria "ampliar o conceito de família para animais não humanos". "Se efetuada, essa mudança significaria um enfraquecimento do conceito de família, já bastante combalido nos dias atuais. Ao se 'humanizar' os animais, corre-se o risco de 'desumanizar' a família", comenta.
"Família multiespécie" cresce como conceito jurídico e já figurava em projeto de lei da Câmara
A expressão "família multiespécie" tem sido cada vez mais usada na comunidade jurídica para designar as relações entre seres humanos e animais. À medida que a afetividade se consolida como critério para definir como família qualquer grupo que conviva junto, crescem as analogias entre os vínculos familiares e os laços sentimentais de seres humanos com bichos.
Para Katia Magalhães, não se pode transformar a afetividade em critério isolado na definição de família. "É claro que as famílias também se formam em torno da afetividade, mas há outros elementos necessários à formação do núcleo familiar. Quando você contrai vínculos em um casamento, por exemplo, há interesses patrimoniais e todo um regime de bens que vai muito além da afetividade. Colocar tão somente o afeto como elemento para a caracterização de uma família transforma esse núcleo social regido pelo Direito Civil em algo extremamente fluido, passível de compreender qualquer tipo de conceito", comenta.
Seguindo a tendência de monopólio do afeto na definição das relações, alguns autores têm usado a expressão "Direito das Famílias" no lugar de "Direito de Família", justamente porque a primeira alternativa pode albergar os mais diferentes arranjos de relacionamentos pautados no afeto. Esse é, aliás, um motivo de divergência entre relatores do anteprojeto: o advogado Flavio Tartuce prefere a expressão "Direito das Famílias" no documento, enquanto a advogada Rosa Nery opta pelo termo "Direito de Família".
Não só nas propostas da comissão de juristas para o Código Civil, mas também no Congresso, a noção de famílias compostas por animais já foi trazida à discussão. Em tramitação na Câmara dos Deputados, há o Projeto de Lei 179/23, que fala explicitamente em "família multiespécie".
O documento é de autoria dos deputados Delegado Matheus Laiola (União-PR) e Delegado Bruno Lima (PP-SP), e estabelece uma série de direitos e proteções legais para os animais, com ênfase na afetividade nas relações entre humanos e animais domésticos. O art. 8º do projeto chega a afirmar: "Os animais de estimação serão considerados filhos por afetividade e ficarão sujeitos ao poder familiar".
O projeto chama os donos dos animais de "pais humanos", e diz que é obrigação deles, entre outras coisas, "dar nome e sobrenome ao animal" e "dirigir-lhes a criação e exigir que lhes prestem obediência e respeito, sem infligir-lhes maus tratos".
Assim como a proposta da comissão de juristas para o novo Código Civil, o projeto da Câmara também aborda a proteção dos animais em situações de divórcio ou fim de união estável, regulamentando a guarda, visitas, e a atribuição de patrimônio por testamento.
Resumo das propostas feitas pelos juristas para o novo Código Civil
O arquivo em PDF abaixo contém um resumo das principais mudanças propostas para o anteprojeto do novo Código Civil em assuntos relacionados a pessoa, vida, família e casamento. Confira:
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