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Depois de sofrer pressão de sindicatos e grupos como CNTE e UNE pedindo a revogação do novo ensino médio, o governo Lula, por meio do Ministério da Educação, apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei com alterações do modelo que está em fase experimental desde 2020. As mudanças propostas vão na direção contrária às políticas internacionais de educação com bons resultados, mas favorecem as demandas dos sindicalistas.
O projeto de lei apresentado pelo ministro Camilo Santana praticamente volta à distribuição e carga horária de matérias de formação básica que existiam antes da reforma. Esse conjunto de disciplinas, chamado pejorativamente de “currículo enciclopédico”, por tratar de forma superficial de vários assuntos, havia sido substituído na reforma pela possibilidade de o aluno optar pela educação técnica ou por aprofundar em áreas específicas do conhecimento.
A reforma tinha por objetivo melhorar a qualidade das disciplinas, evitar a evasão dos alunos com conteúdos direcionados à sua área de interesse e, ao mesmo tempo, facilitar a oferta da educação técnica. Para os sindicatos, esse modelo prejudica professores, já que a oferta de disciplinas dependeria mais da escolha dos alunos.
Com o retorno ao “currículo enciclopédico”, todas as disciplinas com poucas horas cada uma, os professores também serão menos exigidos em expandir a sua formação e qualidade. Com a reforma, eles teriam de ser capazes, como ocorre em outros países, de aplicar os conhecimentos em projetos interdisciplinares, envolvendo várias áreas em um mesmo conteúdo.
“Política educacional deveria prestar atenção na aprendizagem dos jovens, no caso do ensino médio, e não em uma disputazinha de carga horária de professor”, afirma Claudia Costin, especialista em educação e presidente do Instituto Singularidades. Segundo ela, as experiências internacionais demonstram que não há perda de carga horária dos professores em modelos como os propostos pela reforma do ensino médio – nem a experiência de estados brasileiros que estão à frente disso, como Pernambuco.
Costin entende que o “freio de arrumação” dado pelo governo ao tentar paralisar a reforma do ensino médio, em abril, abriu espaço para que os interesses corporativistas pudessem influenciar o processo. “Foi correto o freio de arrumação, mas eu acho que algumas falhas precisam ser corrigidas pelo Congresso. A principal é que eles se renderam parcialmente às pressões dos sindicatos”, reitera.
Muitas matérias em pouco tempo gera um conhecimento superficial
De acordo com os especialistas em educação ouvidos pela Gazeta do Povo, um dos principais problemas do novo texto é o aumento da carga horária para a formação básica, que inclui todas as tradicionais disciplinas. Se o governo Lula tinha nas mãos a possibilidade de incentivar o ensino técnico profissionalizante no país, essa oportunidade foi desperdiçada.
Na lei atual são destinadas, nos três anos, 1.800 horas para formação básica e 1.200 horas para as matérias optativas ou de ensino técnico. Com a proposta, a ideia é passar a formação básica para 2,4 mil horas – restando 600 horas para optativas. Já para os alunos de cursos técnicos, a divisão será de 2,1 mil horas de matérias básicas e 800 horas para a formação profissionalizante.
A formação básica implica no estudo das matérias definidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC): de português a matemática, passando por artes, educação física, história, geografia, sociologia, filosofia, biologia, física, química e inglês. Assim, o que foi sugerido pela equipe de Camilo Santana passa a ter mais proximidade com o que era o ensino médio anterior às mudanças de 2017.
Na prática, a quantidade de horas destinada a formação profissionalizante limitará consideravelmente as opções de oferta para os estudantes. Por exemplo, os cursos técnicos em mecatrônica, estradas ou radiologia devem ter carga horária mínima de 1.200 horas, tempo estipulado pelo próprio MEC. Tratando-se de cursos técnicos como administração, programação de jogos digitais ou computação gráfica, o MEC define a destinação de, no mínimo, 1000 horas. Ou seja, os estudantes não poderão cursar nenhum dos cursos citados.
Currículo com “matérias enciclopédicas”
Se pelo mundo a fora o conhecimento se encaminha de forma cada vez mais interdisciplinar, não é essa a proposta do MEC. O tempo para disciplinas que abordam uma ou duas áreas de conhecimento de forma integrada foi reduzido. O objetivo dessas matérias é capacitar os estudantes para que apliquem o conhecimento na prática, ao promover habilidades de colaboração, resolução de problemas e pensamento crítico.
O estado de Goiás, por exemplo, oferece aos alunos de ensino médio disciplinas como comunicação, agronegócio e energia. Na matéria de comunicação, estudam conceitos da “Linguagem e suas tecnologias”. Nela, desenvolvem a capacidade comunicativa a fim de prepará-los para a inserção no mercado de trabalho, exercício da cidadania e enfrentamento de outras questões cotidianas.
Para o professor e pesquisador na área de educação, Helber Vieira, o texto enviado ao Congresso retrocede ao diminuir a carga horária de matérias interdisciplinares. “Na minha opinião, é o retorno a um modelo que a evidência científica mostra que dá errado”, afirma. Ele complementa reiterando que “em um mundo cada vez mais complexo, o que a gente precisa é de integração entre os conhecimentos”.
Para o governo Lula, o estudo do espanhol também deve ser obrigatório, mas Claudia Costin discorda. Há uma linha que acredita que o espanhol deve ser obrigatório por ser o idioma de países próximos ao Brasil. “É importante que a gente lembre que o inglês é a língua franca. O mundo fala inglês, se você for na China ou na América Latina, todo mundo fala inglês”, comenta.
Ela explica que para ter um conhecimento pré-intermediário ou intermediário em inglês, o estudo deveria começar no primeiro ano do ensino fundamental até o último ano do ensino médio. Já o espanhol, em um ano é possível se comunicar no nível básico. “Soa bonito, mas na prática aumenta as desigualdades educacionais e sociais. Os jovens de classe média estudarão inglês no período em que não estarão na escola”, reafirma.
Ensino a distância e professores com notório saber
O ensino a distância pode se tornar restrito apenas para situações de emergência, se aprovado o projeto de lei. Durante a pandemia, o modelo foi uma saída para driblar as escolas fechadas, com resultados questionáveis, principalmente para alunos dos primeiros anos do ensino fundamental. Ao mesmo tempo, a restrição da educação a distância a situações de emergência pode impedir iniciativas que enriqueçam os currículos, como a colaboração das redes de ensino entre os estados, por exemplo.
Além disso, os cenários da educação no país são diversos. No Amazonas, há um centro de mídias que oferece ensino a distância para as populações ribeirinhas por satélites. Como as regiões são de difícil acesso, não há benefício em mandar um professor de química para dar apenas duas horas de aula. Na prática, um professor generalista organiza o centro de aprendizagem e os professores de Manaus podem ensinar através do vídeo. “[A educação a distância] não é só para momentos como os de pandemia, como vivemos, mas também para situações como essas que ainda não têm densidade de alunos para compor uma escola inteira”, acrescenta Claudia Costin.
Outra mudança pedida pelos sindicatos, presente na proposta do governo Lula, é a proibição da contratação de professores com notório saber. A reforma de Temer previu essa possibilidade para que os alunos pudessem contar com professores que, mesmo sem licenciatura, por atuarem no mercado de trabalho, teriam notório saber em áreas técnicas, maior que os professores egressos das faculdades.
Nesse sentido, Costin acredita que o Congresso deveria manter a possibilidade de contratação de professores com notório saber, especialmente para o ensino técnico profissional. “[Do contrário], aumenta o risco de pegar pessoas [para dar aulas] que fizeram licenciatura e que nunca colocaram a mão na massa. Se o cara nunca trabalhou com mecatrônica e fez um curso de licenciatura em relação a isso, será que ele é o melhor professor?”, questiona.
Áustria, Alemanha e Suíça são países que possuem um modelo dual de ensino profissional. Lá, os alunos passam parte do dia na escola e parte em uma organização com pessoas proficientes naquela profissão desejada. Esses profissionais, apesar do grande conhecimento prático, não possuem cursos de licenciatura.
Conteúdos distantes do mercado de trabalho
A reforma de 2017 previa que o estudante optasse por se dedicar a determinadas áreas do conhecimento, em “itinerários formativos”, com carga horária maior, mas, pela proposta do MEC, isso será feito em menos tempo por meio dos “percursos de aprofundamento e integração do saber”. Helber Vieira acredita que essa mudança de nome é simbólica e pode demonstrar um certo revanchismo. “Quando a gente fala de itinerários ou percursos, a perspectiva é a mesma: de aprofundamento de conhecimento”, explica.
Helber Vieira lamenta a redução da carga horária para as disciplinas específicas, o que ajudaria o aluno a aprender com profundidade áreas como linguagens ou exatas. Para ele, o país tem se rendido a discussões ideológicas que impedem uma configuração do ensino médio que ajude os alunos a enfrentarem o cenário atual do mercado de trabalho, bastante complexo e competitivo.
O projeto de lei do MEC indica um número mínimo de percursos que devem ser ofertadas pelas escolas, o que não foi feito anteriormente. Se, por um lado, há uma sensata preocupação com a desigualdade social das diferentes redes de ensino, outros acreditam que esse nivelamento é muito baixo. Vieira entende que é preciso oferecer oportunidades para todos os brasileiros, mas essas oportunidades não seriam necessariamente iguais, visto que cada estado estará em uma situação diferente e complexa.
“Seja na reforma antiga ou na nova, o desafio vai continuar sendo o mesmo, que é o de ter escolas bem equipadas e professores preparados para essa implementação”, considera Vieira. Segundo ele, é uma visão muito utópica acreditar que será o ensino médio o responsável em mudar a realidade de desigualdade no país.
Apesar de briga ideológica, o novo ensino médio começou com empenho do PT
Apesar dessas discussões ideológicas atrasarem o avanço da educação, vale ressaltar que o debate sobre novo ensino médio foi levantado por um consenso técnico, segundo Costin. Pode ser que nem todos se lembrem, mas a ideia do novo ensino médio surgiu com Fernando Haddad, quando ocupou o cargo de ministro da educação. Apesar dos secretários de educação estaduais também manifestarem interesse sobre o tema, na época a pauta não andou.
Com o debate parado e enxergando a necessidade de mudança, o ex-presidente Michel Temer apresentou uma medida provisória a fim de acelerar a discussão entre os poderes em 2017. O texto da MP, que foi aprovada pelo Congresso Nacional, teve como base um projeto de lei do deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) que, inclusive, continua em tramitação na Câmara dos Deputados.
O novo projeto de lei apresentado pelo governo Lula ainda está aguardando o despacho do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-PI). Como o governo já apresentou em regime de urgência, a proposta vai direto para o plenário e tem o poder de trancar a pauta se não for deliberada até o dia 11 de dezembro.