O Prêmio Nobel de Química deste ano foi concedido às pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna, responsáveis por uma técnica tão revolucionária quanto perigosa: o CRISPR/Cas9, que permite a “edição genética” de seres vivos - em tese, inclusive seres humanos. A descoberta, feita em 2012, foi celebrada pelo comitê do Nobel como “uma ferramenta para reescrever o código da vida” e como um possível caminho para tornar realidade “o sonho de curar doenças hereditárias”. Mas, além das sérias implicações bioéticas, o CRISPR/Cas9 tem enfrentado outro problema: os primeiros testes em embriões humanos não foram bem-sucedidos.
O CRISPR/Cas9 supera todas as outras terapias genéticas porque permite o uso de “tesouras” para recortar e manipular sequências de genes. Isso pode fazer com que, por meio de intervenções em embriões, doenças como a fibrose cística e até mesmo alguns tipos de câncer sejam evitadas. Em geral, estudos feitos com células isoladas em laboratório têm sido promissores. Mas uma pesquisa recente lança dúvidas sobre a eficácia da técnica quando aplicada em embriões.
Um estudo realizado pela Universidade de Columbia, em Nova York, e publicado em outubro, encontrou “obstáculos significativos à correção de mutação em embriões humanos.” Os pesquisadores notaram que a aplicação do CRISPR/Cas9 pode não apenas ser ineficaz, mas também ter consequências que não haviam sido detectadas por outros estudos: a destruição total ou parcial de cromossomos. Isso pode gerar anomalias graves ou simplesmente tornar inviável a sobrevida do embrião.
“Esperamos que essas descobertas cautelares desencorajem a aplicação clínica prematura dessa importante tecnologia”, afirmou Dieter Egli, professor de Biologia da universidade e líder da equipe que conduziu o estudo. Ele acrescentou, entretanto, que o estudo pode servir como guia “para pesquisas responsáveis” que alcancem um “uso efetivo e seguro” da técnica.
Em 2017, pesquisadores de uma universidade no estado americano do Oregon anunciaram ter feito uma aplicação bem-sucedida da técnica em embriões, mas o anúncio foi recebido com certo ceticismo pela comunidade acadêmica. Agora, o estudo de Columbia aumenta as dúvidas sobre a eficácia da do CRISPR/Cas9. Além disso, mesmo que os testes em embriões fossem bem-sucedidos em uma primeira observação, restariam dúvidas sobre as possíveis sequelas no longo prazo, conforme o indivíduo se desenvolve.
O risco de uso da técnica para eugenia
Ainda mais preocupante é a possibilidade de mau uso da técnica. Se aplicável em seres humanos, o CRISPR/Cas9 permitirá que pais optem por editar os genes dos filhos ainda na fase embrionária. Será relativamente simples alterar a cor dos olhos ou do cabelo da criança. Além disso, a técnica permitirá que os pais optem por filhos com uma altura específica, ou uma capacidade muscular maior do que a média. Em uma palavra, eugenia.
“Essa técnica é polêmica porque pode abrir as portas para eugenia. Se eu quero produzir um superatleta, ou alguém com uma capacidade respiratória maior para ser um maratonista, eu consigo. Se os pais querem ter um filho louro de olhos azuis, eles conseguem. Se tem quem pague, tem quem faça”, diz o professor Cesar Grisólia, que é doutor em Genética e leciona Bioética na Universidade de Brasília (UnB).
A própria pesquisa com embriões, como a feita em Columbia, é controversa porque usa embriões humanos produzidos especificamente para o estudo - e que depois são destruídos. No caso específico, os cientistas utilizaram espermatozoides de um homem com uma condição genética que causa a cegueira para gerar 40 embriões. As regras do governo americano vetam o uso de recursos públicos nesse tipo de pesquisa, mas os cientistas conseguiram financiamento privado para o estudo.
O Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, ainda não tem uma legislação tratando do uso dessa técnica em seres humanos. Mas as entidades de pesquisa geralmente se comprometem a cumprir códigos de ética internacionais. O país também é signatário de tratados que impedem experimentos considerados antiéticos. Mas as normas internacionais não são suficientes para evitar a atuação de aventureiros.
Em 2018, um pesquisador chinês anunciou ter editado geneticamente três embriões que depois foram implementados em duas mulheres (uma delas teve crianças gêmeas). He Jiankui, pesquisador de uma universidade em Shenzhen, afirmou que a intenção era imunizar as crianças contra o vírus HIV. A notícia gerou repercussão negativa na comunidade científica internacional. Mesmo na China, onde as regras no campo da bioética são menos restritivas, o caso gerou punição. Em 2019, Jiankui acabou condenado a três anos de prisão.
“A técnica em si é moralmente neutra. É preciso questionar o comportamento humano, porque isso tem uma implicação bioética seríssima. Essa tecnologia, na mão de pessoas bem-intencionadas, pode curar doenças. Na mão de pessoas mal intencionadas resulta em eugenia”, afirma o professor Grisolia.
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