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"Essa rua não tem nome", avisa Isabel Vendramin Paulin, 81 anos, a dona Beta, moradora de Santa Felicidade desde o dia em que nasceu. "E daqui só saio morta", dispara, enquanto acompanha a reportagem pela via sem asfalto, sem placa e sem saída que nasce na Toaldo Túlio – uma das mais movimentadas da região. Vários parentes de Beta moram na ruela – que em breve deve receber o nome do marido dela – José João Paulin – ou da sogra, Catarina Costa Paulin. "Para mim, tanto faz. Fui feliz com meu marido. Minha sogra era muito boa. Não tivesse sogra, ficava sem marido", brinca.

Realmente tanto faz. Nome de rua ou não, os Vendramin e os Paulin – os dois ramos que formam a família da veterana – já integram a história (e o destino) de Santa Felicidade. O que é um motivo forte o bastante para justificar que Beta tenha feito daquele bairro um lugar para chamar de seu. Milhares de curitibanos, pelo que tudo indica, fazem o mesmo. E muitos desses moram a poucos metros de Beta, a exemplo de Maria Delourdes Dala Stella, um típico caso de curitibana enraizada: não bastasse o sobrenome do marido – confundido com Santa até a medula –, ela era Luca, de solteira. Duas vezes Santa. Da janela da pequena chácara em que vive, ainda pode ver o casarão que pertenceu a seus pais e onde viveu até se casar. Rejeitar essa paisagem da memória, jamais.

A tese de que Curitiba é uma cidade onde as pessoas tendem a "ficar" no bairro pode até carecer de rigor científico, mas passa com louvor pelo teste da vida comum. Atire a primeira pedra quem, ao ouvir um sobrenome qualquer, não perguntou coisas do tipo: "Você é dos Baggio da Água Verde? Ou: Conhece os Domakoski do Bigorrilho?" Pois não se trata de mero provincianismo. É indisfarçável, por essas bandas, que sobrenome não é apenas sinônimo de status e dinheiro, mas uma questão de geografia. As placas das ruas não mentem. E esse negócio de "circunscrição familiar territorial" tem lá suas vantagens – igualmente não comprovadas por nenhum pesquisador: os bairros mais antigos, por exemplo, não são pobres, médios ou ricos, mas os três, destoando do destino das cidades litorâneas, nas quais a tendência é se mudar para a Zona Sul, fazendo do endereço de berço uma vaga lembrança de um passado de penúria.

Melhor ainda que a distribuição de riqueza e trabalho movida pelo afeto – embora quem viva num edifício do Bigorrilho ou do Cabral não saiba disso – é constatar que numa casinha daquelas que sobraram, alguém, pacientemente coleciona fotografias e informações do tempo em que tudo aquilo era poeira e lama, claro, pois a terra da galocha é aqui. A reportagem da Gazeta do Povo foi atrás de algumas dessas pessoas e encontrou o que imaginava: na casa de João Derosso, de Cecília Agner e de Ariel Geronasso, por exemplo, está o álbum de retratos guardado feito um tesouro. E o que eles têm para contar é de deixar historiador plantado na porta.

Os boletins

A historiadora Maria Luíza Gonçalves Baracho, da Fundação Cultural de Curitiba, participou da confecção de um dos boletins da Casa Romário Martins – ainda inédito – dedicado ao Bigorrilho. Ao todo, a série surgida em 1974 já publicou 127 títulos, sendo pelo menos 15 deles sobre memória urbana, ou seja, bairros. Os outros tratam de personagens ou de memória institucional. É inevitável: aqui ou ali os entrevistados se põem a listar o rosário de clãs que fizeram do bairro não só uma necessidade para a administração pública, mas uma espécie de aldeia com vida e identidade própria, com seus reis, rainhas, loucos e sábios. Além de um verdadeiro livro das Mil e Uma Noites, tamanha a profusão de narrativas que sobrevivem à fúria da especulação imobiliária.

De suas andanças pelo Bigorrilho, Maria Luiza, em parceria com o historiador Marcelo Sutil, já levantou temas para futuras pesquisas, como a influência das sociedades de bairro, feito a 21 de Abril, no Bigorrilho – hoje praticamente extintas – e para a necessidade de alertar a velha-guarda de que cartas, fotos, cadernetas de armazém, livros de receita e objetos de armazém são fontes para os pesquisadores. Tem documento se perdendo. "Usamos muito da história oral e, mesmo sabendo que a memória é uma construção imprecisa, os depoimentos ajudam muito na pesquisa", acrescenta a historiadora.

Em 1998, o jornalista Eduardo Fenianos, 35 anos, também foi surpreendido pelas histórias que unem famílias a determinadas divisas. Qual um expedicionário, ele percorreu nove mil quilômetros dentro de Curitiba, ganhando com mérito a alcunha de "urbenauta". Três anos depois, fez proeza semelhante em São Paulo, rodando 7.920 quilômetros. Virou quadro do Fantástico. Antes disso, publicou 29 livros sobre os bairros de Curitiba, reunindo mapas, histórias e serviços das principais regiões.

O urbenauta não esconde o entusiasmo com o tema. Lembra dos Muraro do São João e dos Dietsch do Portão, dos Benatto do São Brás e adjacências. Repete a máxima que anda na boca do povo: "tem mais Gabardo e Bobatto no Pinheirinho do que capim gordura". Ilustra a conversa falando de gente que teima em viver na Vila das Torres – mesmo tendo dinheiro para sair dali. E puxa pela memória a família que não só morava em peso na mesma rua como a rua ficou conhecida pelo nome da família – Rua dos Moletta.

Quando repetiu a experiência de viajante urbano em São Paulo, Fenianos encasquetou. Encontrou situação parecida à de Curitiba na Paulicéia Desvairada. Um encontro com o indigenista Orlando Villas-Boas, na ocasião, confirmou que deveria aprofundar mais a idéia de aldeia que mora em cada bairro. Hoje, está debruçado na antropologia. "Sabe por que as pessoas se acidentam mais perto de casa? Porque é onde se sentem mais seguras", provoca.

Por essas e outras, entendeu as razões do pessoal do Jardim Ângela ao lhe dizer, na expedição, que o bairro que não sai do noticiário não é violento. Violenta seria a Zona Leste. E o pessoal da Zona Leste diz que não é com eles – violência, só no Jardim Ângela. "A gente fica numa boa no lugar onde jogou bet-ombro. Sem falar no sentimento de ser alguém naquele espaço. E não em outro", interpreta. Faz sentido.

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