Vinte e três universos se desenrolam por trás de janelas sem cortinas. O olhar vago e descoberto denuncia: são pessoas que deixaram de enxergar há muito tempo. São os últimos 23 moradores do Instituto Paranaense de Cegos (IPC), organização da sociedade civil que abriu as portas há 75 anos e hoje luta para se reinventar após escândalos de corrupção e superfaturamento de antigos diretores. O instituto, que acolhia deficientes visuais de baixa renda, deixou de receber internos há cinco anos. Em outros tempos, a instituição chegou a ter 200 moradores ao mesmo tempo.
O fim do acolhimento se deu com a chegada do terceiro interventor designado pela Justiça para tocar o IPC em uma década, o professor Enio Rodrigues da Rosa que tem baixa visão. O diretor entende que o IPC deveria ser revitalizado de modo a inserir os deficientes visuais na sociedade e desconstruir a visão de que seriam "coitadinhos", dependentes que precisam de piedade. A vontade de mudar fez com que o instituto desenvolvesse uma série de atividades no contraturno escolar, como aulas de braile e artes, além de orientações para uma vida independente.
Os últimos moradores vivem seus dias em um clima modorrento de solidão. Eles não serão despejados, segundo a direção, porque não têm para onde ir. A maioria chegou jovem, em uma época em que ter algum tipo de limitação física tornava a vida independente quase impossível. Hoje já entraram em idade avançada, o que faz com que o local seja conhecido como "asilo".
O IPC é a única entidade específica para o acolhimento de deficientes visuais em situação de vulnerabilidade social credenciada pela Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS), que não deve ampliar o convênio para outras instituições. O ex-diretor e ex-morador Manoel Cardoso dos Passos, afastado pela Justiça, diz que é necessário que a cidade tenha um lugar de internamento para situações extremas. "Eles não têm outra opção a não ser ir para o instituto. Tem gente querendo se internar e não pode entrar", diz.
Os moradores passam o tempo perambulando pela instituição, tomando sol e fumando no pátio. Conversam pouco, sempre em tom baixo. De um dos quartos, o som constante da sanfona de João Maria Leal incomoda os outros moradores, que preferem o silêncio. João Maria é um dos internos mais recentes do IPC. Chegou ao instituto há oito anos, depois de ter sido abandonado pela família. Ele nunca enxergou com o olho esquerdo. Quando tinha 48 anos, perdeu a vista direita em um acidente. A esposa faleceu e os quatro filhos não aparecem para visitá-lo. "A vida hoje pra mim não tá legal. Quem já teve casa, esposa, uma vida, não se acostuma com internato", lamenta, ao som da sanfona que aprendeu a tocar sozinho.
Escândalos marcam a crise do IPC
As polêmicas do Instituto Paranaense de Cegos (IPC) não passam despercebidas pelos moradores. A imagem criada por eles é de que o instituto é uma grande fonte de riquezas e que os dirigentes antigos ganharam muito com ele. Não é à toa: ex-administradores respondem na Justiça por acusações de desvio de dinheiro e enriquecimento ilícito, o que teria "dilapidado" boa parte do patrimônio do IPC ao longo dos últimos anos, segundo o atual diretor, Enio Rodrigues da Rosa.
A guerra começou em 1996, quando um grupo de cegos acampou por seis meses em frente ao IPC, na Avenida Visconde de Guarapuava, em Curitiba. Eles queriam assumir a direção do instituto e conseguiram. "Foi pelas mãos dos próprios cegos que o instituto atingiu a sua pior crise", lamenta Rosa. Um dos moradores resume a situação da seguinte maneira: "Entraram com chinelinho de dedo e quando saíram tiveram de mandar carregar baús cheios de coisas".
O último diretor, Manoel Cardoso dos Santos, foi afastado em 2009. Ele foi o líder do acampamento improvisado na Visconde. O processo que ele responde ainda corre na Justiça e tem cerca de 1,6 mil páginas. Santos foi acusado pelo Ministério Público de ter desviado verbas e colocado terrenos do instituto em seu nome. "Era caótico o quadro que a instituição passava, receitas e despesas totalmente desequilibradas, pendendo obviamente para um saldo negativo por mês, em torno de R$ 35 mil", diz um trecho do documento.
O texto cita que uma propriedade, avaliada em R$ 700 mil, foi ocupada por Santos, onde montou uma fábrica de vassouras e um lava-jato para o filho. Por telefone, Santos afirma que uma ex-diretora do IPC passou o terreno para o seu nome de forma legal em 1989. Ele diz que o lava-jato nunca existiu e que os supostos desvios de verba teriam sido um mal-entendido. Segundo ele, o instituto tinha de pagar 48 ações trabalhistas e a Justiça confiscava toda a verba que entrava. "Isso eles chamaram de desvio", disse.