Nas décadas de 1950 e 1960, se um visitante perguntasse onde Curitiba era “um perigo”, os dedos seriam apontados para a Praça Carlos Gomes. Ali estavam os bares pé-sujo e – não por acaso – os jornais e as emissoras de rádio. De modo que circular pela praça trazia pelo menos três possibilidades, todas excitantes: encontrar uma boa dose de Crush com Gin Booth’s e carne-de-onça – para manter a flora intestinal; cruzar com dezenas de jornalistas e deles ouvir uma boa história para contar em casa; tropeçar nos próprios personagens dessas histórias.
A tomar pelo noticiário da época, havia nas imediações da “Carlos Gomes” mais maridos traídos e gurias abandonadas – dispostas a se vingar com um trago de soda cáustica – do que em toda a obra de Dalton Trevisan. A convivência pacífica entre candidatos à página policial, cantores de auditório e repórteres merecia um tratado da ONU. O encontro se dava em bares como o “Carequinha”, “Paris”, “Papai” e “Espeto de Ouro”. Na falta de notícia, bastava aos repórteres encostar o umbigo num desses balcões, depois voar para o emprego, prender a lauda no rolo de uma Remington e disparar o lide. O resto do tempo podia ser dedicado a traçar um “Churrasco Paranaense”, no Bar Palácio – “o último que fecha”.
Não há estimativas, mas o número de pessoas da imprensa nas imediações da Carlos Gomes era proporcional ao de colunáveis nos prédios residenciais da Santos Andrade e da Osório, então dois dos endereços mais elegantes da capital. Para o reportariado, mudar de emprego implicava apenas em atravessar a rua, onde sempre se podia encontrar um concorrente à caça de escribas. Havia a redação do Diário do Paraná, na Rua José Loureiro; Tribuna e O Estado do Paraná, na Rua Barão do Rio Branco; a Gazeta do Povo na Praça Carlos Gomes – sem falar nas rádios como a Clube (B2), a Tingui, a Guairacá, algumas delas vizinhas de parede nos velhos sobrados da Barão.
No final dos dourados anos 1950, esse cenário caiu nas graças de um imigrante soviético, cuja arte e personalidade marcariam a vida da cidade até 1978, quando se retira de cena, vindo a morrer em 18 de abril de 1984. Chamava-se Francisco Gortz Filho, um “cigano branco”, como à época muitos se referiam aos membros da comunidade menonita, aqui enraizada nos bairros do Boqueirão, Hauer e Xaxim, e assim chamada por não se descaracterizar jamais, pouco importando o país em que se fixasse.
De presente
“Chicão”, como o chamavam, era fotógrafo de fina-cepa, mas em matéria de jornalismo não passaria de um “foca”, como se diz no jargão, ao se referir aos iniciantes. Tinha passagem pela Foto Progresso, dos irmãos Weiss, na Rua São Francisco – aquela que foi apedrejada em 1942, num dos piores capítulos da germanofobia em Curitiba. Depois abriu seu próprio estúdio – o “São Paulo”, na Rua das Flores, onde a concorrente era nada menos do que a imbatível Foto Brasil, dos irmãos Jacobs e de Isaac Kriger.
As promessas dos anos Juscelino Kubitschek não fizeram justiça a Gortz. Provou do fracasso e da falência até que, em 1959, bate na porta do Diário do Paraná e pede emprego. Fotografar era, afinal, seu ofício. Não estava enganado. O homem que tinha visitado os infernos antes de fugir da URSS e que se tornou refugiado na Alemanha tinha, enfim, encontrado seu ninho – o basfond da Praça Carlos Gomes. Nas próximas duas décadas seria figura típica ali.
Alto, alinhado, cabelo à gomalina penteado para trás, bigode à Clark Gable e cigarro sem filtro entrededos, deixava a suspeita de que não tirava a Rolleyflex do pescoço nem para tomar banho. Dizia que a barriga, criada com o tempo, era um calo provocado pela câmera. Acompanhando o visual, uma bolsa a tiracolo, em couro de primeira. Era dali que sacava, como um baralho, as fotos que fazia na redondeza, em horinhas de descanso num boteco ou ao virar a esquina. Se lhe pagassem, ótimo. Se não, tanto fazia: presenteava, deixando ao vento o que pode ser um dos melhores acervos fotográficos de que se tem notícia no Paraná.
O fato de haver tantas imagens feitas por Chicão, hoje presas com cantoneiras e vedadas com papel seda nos álbuns de família, não teria tanta importância fosse ele um fotógrafo comum, um lambe-lambe à cata de uns trocados. Não era. Ainda que não haja uma crítica sobre sua obra, pode-se afirmar que se tornou o representante local de um dos períodos áureos do fotojornalismo brasileiro. Chegou tarde à imprensa, passado dos 40 anos, mas com ganas de um cossaco. A diferença é que em vez da redação da revista O Cruzeiro, onde pontificavam nomes como Jean Manzon, José Medeiros ou Indalécio Wanderley, ele batia ponto no Diário do Paraná e na Gazeta do Povo.
Enigmas
Parte do fascínio provocado pelas fotos de Chicão se deve à sua biografia de homem errante, o que lhe cunhou uma obsessão pela liberdade. “Era um sujeito que não cabia num quadrado. Ele escapava. Não tinha horários. Se sentia vontade de ir a Paranaguá, no meio da semana, pegava o trem e ia”, conta o filho mais velho, Francisco Gortz Neto, 66 anos. Talvez venha desse sentimento o olhar perdido que identificava em seus personagens. Eram, à imagem e semelhança do fotógrafo, pessoas que pareciam ausentes da cena em que estavam– “como se contassem uma história diferente da esperada”, observa o jornalista e fotógrafo Marcos Schroeder, 32 anos, neto de Gortz e seu curador natural.
No conjunto, Chicão mesclava o gosto pelo paisagismo – que os alemães, etnia à qual os menonitas miscigenaram cada gota de seu sangue holandês, tanto cultivam (vide os fotoclubes) –; a atmosfera requintada da iconografia europeia, à moda Felix Nadar; os truques próprios dos retratos em estúdio – seu ganha-pão desde a mocidade; e, claro, o aprendizado adquirido numa casa de malucos chamada “jornal”. Há momentos em que parece emular o norte-americano Walker Evans, fotógrafo da Depressão Americana, mas não há registros de que tenha conhecido essa produção. O mesmo se diga da influência de Cartier-Bresson.
Grão a grão, “Xreda”, como Marcos é conhecido, organiza as fotos deixadas pelo avô e tenta entender sua trajetória. Tem palpites. “Eu diria que ele captou o espírito da época”, resume, sobre a produção invulgar de Chicão. A empreitada está engatinhando. O acervo, digitalizado, contabiliza menos 300 imagens. A maior parte é oriunda dos álbuns dos cinco filhos de Gortz e dos arquivos dos menonitas do Boqueirão, que o tiveram mais como fotógrafo contumaz do que como um irmão piedoso, espartilho ao qual se rendeu na velhice, depois do derrame que o aposentou em 1978.
Resta reunir a produção feita para os jornais; as fotos de casamentos, tiradas para complemento de renda; e a produção espontânea – das melhores, diga-se. Bastava alguém passar ao lado do balcão em que estava, no Bar do Luís, por exemplo, para ser alçado da categoria de anônimo à de esfinge. Encontrar esse material é que são elas – um trabalho de perícia. Por serem fotos afetivas, a suspeita é que estejam bem guardadas em acervos particulares, à espera de um scanner, de uma legenda e da generosidade dos proprietários em partilhá-las.
A pior notícia vem do acervo em jornal. Na segunda metade dos anos 1970, uma chuva forte devassou o departamento fotográfico da Gazeta do Povo, avariando os negativos da editora, à base de gelatina. O que Chicão produziu ali entre 1962 e 1978 virou gosma. As fotos impressas para ilustrar as edições diárias não tiveram destino muito melhor – químicos vencidos, arquivamento de imagens mal saídas do varal e arquivistas genocidas deixaram pouco para contar. Para piorar, nas versões impressas, o jornal não dava créditos ao autor. “A vantagem é que o Chicão tinha uma marca. Se eu olhar os jornais, sei que cada um de nós fez”, observa o fotógrafo Urutides Borges, 85, parceiro de Gortz na Gazeta a partir de 1966, voluntário na tarefa de encontrar vestígios do homem que se dividiu em milhares de imagens, livres como ele.