Convenção de paz no shopping?
A pacificação espontânea da Vila Torres coincide com o momento em que a sigla UPP Unidade de Polícia Pacificadora se tornou tão popular no Brasil quanto a do INSS. Milhares de brasileiros acompanharam a tomada militar de favelas cariocas, inaugurando uma nova modalidade de combate ao crime organizado, cujo maior trunfo é liberar as comunidades do jugo dos traficantes.
Um espaço afetivo
Evitar certas ruas acabou virando uma cultura da Vila Torres. É o caso do jogador de futebol Wagner Eliandro dos Santos, 30 anos, há cinco entre idas e vindas na vila, onde mora sua mulher, "vileira convicta". "Por causa dela eu acabei me aproximando do pessoal. Gosto daqui. Um dia combinamos: nunca nos fizeram nada, mas decidimos respeitar os limites entre as áreas", comenta.
A vila como ela é
Caso vingue, a pacificação da Vila Torres deve se tornar um importante estudo de caso sobre os efeitos do trabalho comunitário no combate à violência. Por ora, não se toca nesse assunto. O que é natural. "As lideranças tendem a não tomar para si esses méritos, de modo a não afrontar o mundo do crime. Mas não há avanço social que não passe pela comunidade", afirma o sociólogo Pedro Bodê, do Centro de Estudos de Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR.
Há uma semana, um clima messiânico tomou conta da Vila Torres zona favelizada mais antiga de Curitiba, ao lado das vilas Parolin e da Nossa Senhora da Paz (antigo Inferninho do Santa Quitéria). Não se sabe ao certo o que se deu. Mas a versão que corre de porta em porta pelos 1.028 domicílios do bairro é que líderes das duas gangues rivais se encontraram num shopping e decidiram baixar as armas, pondo fim a um terror que já dura 15 anos.
Em todo esse tempo, de acordo com relatos dos moradores, era rara a noite em que não se escutava pelo menos um estampido de bala. Mas desde o domingo 10 de abril não há sinal de tiroteiros. E o melhor: a "linha proibida", como é chamada a Rua Guabirotuba, se tornou um território livre, o que tem gerado uma euforia nas ruelas e becos. A circulação entre um lado e outro virou programa de família.
"Estou revendo pessoas que não encontrava havia muito tempo", festeja o comerciante José Cordeiro, líder comunitário e dono de um dos bares do "lado de cima". Conhecida por sua organização comunitária exemplar e por ser o maior celeiro de reciclagem de lixo da cidade, a Torres vivia às voltas com as restrições de trânsito interno, impostas pelos traficantes notadamente jovens.
Ainda com receio de tocar no assunto, moradores admitem que nem o cheiro do Rio Belém, nem o abandono do poder público são piores do que a guerra entre as facções. Indagados se são tão jovens assim afinal, já se passaram 15 anos desde o início dessa história a resposta é sempre a mesma. "Os de 15 anos atrás já morreram..."
Estima-se, por alto, que dos 8,5 mil moradores da vila, 2 mil, 27%, estejam na faixa dos 18 aos 30 anos, justo a mais suscetível às armadilhas do tráfico. A base de cálculo é um estudo da Cohab para a Vila Prado, área lindeira do Belém, em processo de regularização fundiária, e que faz parte das Torres. É senso comum que uma pequena parcela de jovens comanda as bocas de fumo, tendo como tática de poder cercar rapazes e moças da mesma faixa etária, intimidando, por extensão, também os pais e irmãos.
"Já cancelamos de véspera uma festa da comunidade. Como é que podíamos comer bolo ao saber que três rapazes tinham sido executados ali em baixo. Já pensaram como é a vida das mães das Torres? Muitas têm filhos mortos. Para mim, o que está acontecendo é fruto das lágrimas e preces das nossas mulheres", exalta-se Cordeiro.
O presidente da Associação de Moradores da Vila das Torres, o eletrotécnico Marcos Eriberto dos Santos, estima que em uma década e meia 60 jovens tenham sido assassinados nas divisas da comunidade. "Afetou o direito de ir e vir. Muita coisa ficou pelo caminho por causa disso. Desde às 6 da manhã tem alguém rezando para isso acabar. Acho que acabou."
Índice pelada
O "medidor de alta tensão" na Vila Torres é a operação desmanche dos seis times de futebol da vila principal lazer dos jovens , a cada vez que as relações ficam estremecidas. Campo vazio, campeonato peladeiro suspenso e conjuntos de camisas fora dos varais sempre foi mau sinal. De uns dias para cá não se fala em outra coisa senão em futebol.
O campo fica "no lado de baixo", menor, menos habitado algo como 3 mil habitantes onde estão também a unidade de saúde, a creche, o CRAs, as duas escolas da região e o posto policial. O "lado de cima", maior e onde está concentrado pelo menos metade dos 50 estabelecimentos comerciais da vila, vira-se como pode.
José Sanches, o Baleia, dono do espetinho mais famoso da redondeza, criou um museu com fotos antigas da Torres, uma praça psicodélica e uma biblioteca com livros recolhidos do lixo. Se não tem bola, tem o complexo do Baleia. Quando não há como desviar, inventa-se um jeito. As mulheres que precisavam ir à unidade de saúde símbolo máximo do poder público numa comunidade carente , passavam por dentro da PUC, evitando serem molestadas.
A Secretaria Municipal de Saúde prefere não se manifestar, por achar um fato muito recente e o tema delicado. Informa que os profissionais da unidade nunca foram impedidos de circular, mas que, no melhor do estilo "Maomé vai à montanha", já mandou equipes atenderem em igrejas, por exemplo, por causa das restrições do trânsito para o "lado de baixo". O órgão municipal admite que na última semana houve aumento de procura por consultas cuja média é de mil por semana. Pode ser, no entanto, um movimento puramente sazonal.
Segundo as lideranças, não raro muitos moradores chegaram a fantasiar a gravidade das proibições, agindo por precaução. Os mais velhos sempre puderam "subir e descer", admitem. Mas uma boa parte prefere não arriscar, de modo a não provocar os estranhos humores que regem os comandos da vila como o do "setembro e outubro negro" de 2008, com saldo de nove baleados, cinco mortos e a execução arbitrária de André dos Santos Neves, "um inocente", como bradam.
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