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O dia 13 de novembro de 1966 foi dos mais corridos para o policial militar cearense João Marreiro, então com 28 anos. A corporação o incumbiu, em parceria com mais dois companheiros, de cuidar da segurança do presidente da República Humberto de Alencar Castelo Branco, que faria uma passagem relâmpago pela capital paranaense para inaugurar a Cohab Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, hoje um dos mais de 80 bairros que formam a Cidade Industrial de Curitiba (CIC). O conjunto, com 2.176 casas construídas em menos de um ano, fazia parte dos programas nacionais de desfavelização, implantados depois do golpe militar de 1964.

Marreiro se sentiu duplamente atarefado. Além de zelar pelo marechal de ferro que comandava o Palácio do Planalto, era ele quem policiava o campo de obras da vila desde sua criação, havia dois anos. Mesmo sem luz e sem água, afeiçoou-se àquele local onde a paisagem se resumia a um núcleo de moradores da Rede Ferroviária, próximo da Estação Barigüi, pequenos agricultores, bois pastando na imensa área de 800 mil metros quadrados e o céu que nos protege. Fora isso, só o Capão Raso – onde se chegava a pé e com paciência de Jó.

Ex-retirante e morador de rua quando guri, João gostou tanto da surpresa de ver casinhas brancas quase que brotando do chão que se inscreveu na Cohab logo que abriram as inscrições. Era um bom negócio: cerca de 24 cruzeiros mensais, o equivalente a 10% do salário mínimo, pagos durante 20 anos, para ser dono de um lote de 10 por 20 metros, com imóvel de 21 ou 50 metros quadrados em cima. Castelo Branco mal sabia – mas estava sendo protegido pelo sujeito que não só acreditava no programa habitacional como seria uma espécie de presidente vitalício da vila inaugurada com a pressa de quem tira o pai da forca.

A entrega oficial da Vila Nossa Senhora da Luz fez jus à velocidade com que a chamada desfavelização teve de ser implantada no país. "A cerimônia foi mesmo muito rápida. Não demorou nem uma hora", lembra João Marreiro, hoje com 69 anos. No que é confirmado por outra "testemunha ocular da história", o ex-prefeito Ivo Arzua, na época com 41 anos. Arzua tinha convidado Castelo Branco para a cerimônia, recepcionou-o bem cedo no aeroporto – ao lado do então governador Paulo Pimentel – e até quebrou o protocolo. Levou o presidente para conhecer uma das casas – as com sótão de madeira, medindo 50 metros quadrados, cuja estampa de chalé de imigrante, na contramão dos caixotinhos horrendos das Cohabs, concorreu para despertar curiosidade sobre a vila.

A moradia visitada era a do casal Pasqualina e Agenor. O marechal, um homem atarracado, feição de bravo e sem pescoço, como se dizia, subiu a escadinha de madeira e gostou do que viu. Afinal, ali de cima as minúsculas casas populares não pareciam tão minúsculas assim. Lá pelas 10 horas, Castelo Branco levantou poeira na Estrada Velha de Araucária – hoje Avenida João Bettega – e voltou chispando para Brasília com a comitiva da qual fazia parte o general Ernesto Geisel – que em uma década chegaria ao Planalto. Para trás, deixava algo mais do que uma fita cortada ao som do Hino Nacional. A vila de moradias quase iguais era, quem diria, absolutamente diferente de tudo, como a história se encarregou de confirmar.

Saudosa maloca

As Cohabs eram vistas pelo governo militar como a Olina, o Capivarol, a Minâncora e o Óleo de Fígado de Bacalhau: serviriam de remédio para acabar com as favelas, que há muito tempo tinham deixado de ser uma particularidade dos morros cariocas. Com tanto barracão de zinco sem telhado se espalhando pelo país, obviamente alguma coisa não ia bem. A Curitiba mítica dos paralelepípedos e das casinhas de madeira com quintais cheios de galinhas não escapava à sina. Em 66, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), estava próxima dos 500 mil habitantes e tinha uma preocupante taxa de crescimento na faixa dos 7,2% ao ano. Estimava-se haver 1.595 famílias em 22 ocupações – incluindo as famosas Capanema, Vila Guaíra e o Inferninho, em Santa Quitéria.

Segundo o ex-prefeito Ivo Arzua, hoje com 81 anos, todas as famílias sem-teto foram relocadas na Vila Nossa Senhora da Luz, a partir de 1.º de outubro de 1966, o que deu trabalho extra para os caminhões da prefeitura, encarregados de despachar a lotação 15 quilômetros adiante do Centro. Não sem ironia, a distante região do Novo Mundo, a partir daquele dia, ganhou também um subúrbio. E os problemas, como se sabe, não acabaram. A desfavelização foi um projeto frustrado, mas a Vila Nossa Senhora da Luz não tinha volta: o bairro inventado às pressas ganhou fama – nem sempre das melhores. E assim permanece.

Para os curitibanos que moravam do outro lado da linha, a vila virou um exercício de imaginação, em parte por conta das conversas malucas que pareciam correr pelos trilhos com a rapidez de um trem bala. Dizia-se que moradores queimaram os tacos para fazer fogueira, assim que o gás do fogãozinho de duas bocas que acompanhava o imóvel acabou. Que transformaram os sanitários em vaso de planta. Que na Luz não tinha luz em 1966. Nem água – e a caixa d'água gigante não dava conta de 11 mil habitantes. Aconteceu – confirmam pioneiros e professores que atuaram no Grupão do Nossa Senhora da Luz, como Frederico Torres, primeiro diretor da escola, mas não na proporção das filmagens de E o vento levou.

A mais sólida de todas as lendas é a de que foi a primeira Cohab do Brasil, além da maior jamais construída, pioneirismo que enche de orgulho o povo da região. Não é verdade – a Vila Kennedy e a Cidade de Deus, ambas no Rio de Janeiro, surgiram antes da Nossa Senhora da Luz e eram tão grandes quanto. Prova disso é que o arquiteto Alfred Willer – um dos diretores da recém-criada Cohab-CT – foi ao Rio conhecer os dois empreendimentos e ficou ressabiado com o que viu.

"Era um cenário muito monótono e sem imaginação. Um modelo a ser seguido, mas a gente não gostou", conta, sobre as casinhas todas brancas, alinhadas, perfeitas, nos dizeres de Willer, para causar danos psicológicos aos moradores. Graças ao espanto do chefe da Cohab curitibana, a vila já nasceu como uma crítica ao próprio sistema a que pertencia. Sua programação driblava aqui e ali o projeto federal que pretendia liquidar com três pauladas o problema das favelas, como se isso fosse possível. Contra todos, a equipe do arquiteto mexeu no desenho das ruas, implantou recuos – criando um ziguezague entre as residências –, montou um sistema de 12 praças e previu detalhes coloridos nas janelas, uma medida tão simples quanto eficiente. Pelo menos ali ninguém ia entrar no portão do vizinho por engano.

A proposta urbanística e arquitetônica arrojada para a pré-história das Cohabs, contudo, não impediu que a vila curitibana cumprisse o destino das milhares de conjuntinhos implantados no Brasil. Distantes, paupérrimos, superpovoados e largados à própria sorte, esses bairros viraram, quase a rigor, terra de ninguém. O exemplo mais contundente é a Cidade de Deus, cuja trajetória foi transformada em filme de sucesso dirigido por Fernando Meirelles, inspirado no relato de um morador, o escritor Paulo Lins.

Paulo Lins, na Vila Nossa Senhora da Luz, é um cabeleireiro conhecido da praça central. Nenhum filme foi feito ali e, com exceção do livro Cidade Industrial de Curitiba, da jornalista Maí Nascimento, a vila não originou nenhuma obra à altura do lugar que ocupa na história da habitação no Brasil. Em compensação, pode-se afirmar com certa folga que nenhuma Cohab gerou tanta pesquisa acadêmica, o que um "tapa" nos portais de busca da Internet pode confirmar. A Vila Nossa Senhora da Luz fascina pesquisadores, além de ter marcado em definitivo a vida de quem viu o chamado Barigüi do Portão virar uma cidade inventada.

Marreiro, o policial, virou uma autoridade entre os 20 mil moradores da vila de hoje em dia – além de fundador do Itamaraty, misto de associação de bairro e time de futebol, "para ajudar a garotada a não cair no crime." Willer, o arquiteto, tem em seu currículo empreendimentos como o luxuoso Alphaville Graciosa, mas permanece sendo o homem da Nossa Senhora da Luz. Ivo Arzua, o prefeito, guarda documentos aos borbotões sobre o assunto e mantém na parede do seu escritório, no Centro, um mapa onde a colocação do bairro está marcada com as extintas fitas crepes vermelhas. No mais, lá se vão 40 anos da apressada visita do Castelo Branco ao sótão de dona Pasqualina.

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