Presente em diversas obras de José Bento Monteiro Lobato, o famoso personagem Jeca Tatu dificilmente desperta no autor somente ira ou complacência. O incômodo do escritor com a figura de um homem pobre que vive no Vale do Rio Paraíba do Sul e não se interessa por buscar conhecimento ou melhorar de vida tem, como pano de fundo, uma certa afeição. Em 2012, ano do centenário do cineasta que levou Jeca para a telona (Amácio Mazzaroppi), o primeiro registro do personagem completa 98 anos.
No artigo Velha Praga, publicado em 1914 no jornal O Estado de S. Paulo, Jeca Tatu aparece pela primeira vez nos escritos de Lobato. Sem poupar "acidez", o escritor fala do seu assombro com a figura do caboclo, a quem ele define como "parasita da terra". "À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele [o caboclo, ou jeca] refugindo [recuando] em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a [espingarda] picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna [preguiçoso]. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se", salienta Lobato no artigo.
A inspiração provém da vivência, desde a infância, no ambiente das fazendas da família: São José do Buquira (do avô do escritor, Visconde de Tremembé, na cidade de Monteiro Lobato, estado de São Paulo) e Paraíso (do pai, em Taubaté, também em São Paulo). É justamente nessa segunda propriedade rural que Lobato se depara com o "verdadeiro" Jeca, como lembra o sociólogo Márcio Malta, pesquisador da obra do autor brasileiro. Ele conta que Lobato, ainda menino, conheceu uma senhora, "nhá" Gertrudes, que sempre falava muito bem de um neto, a quem chamava Jeca. Após estimular a curiosidade de quem ouvia as histórias sobre o rapaz, ela levou o garoto até a fazenda Paraíso, para que os moradores pudessem conhecê-lo.
"O próprio escritor define esse rapaz, Jeca, como um homem magro, mas ao mesmo tempo barrigudo e desajeitado. Mesmas características apresentadas pelo seu personagem", relata Malta. Ele afirma que o posicionamento polêmico de Lobato fez com que, por um bom tempo, o escritor fosse perseguido e visto com maus olhos. "As obras dele só podem ser analisadas se for considerado o contexto em que aparecem e as relações com as outras, anteriores ou posteriores", destaca.
O sociólogo lembra que o "Jeca Tatu" reaparece em 1918, no livro Urupês, ainda acompanhado por uma visão bastante dura contra o caboclo do Vale do Paraíba. "O cenário muda em 1924, apenas seis anos depois, com o lançamento do livro Jeca Tatuzinho, em que Lobato começa a mostrar sua afeição pela figura do jeca, que passa a ser visto por ele como vítima de uma sociedade e de um governo desinteressados no desenvolvimento desse povo pobre e faminto. Ele toca muito, por sinal, na questão da fome, sem deixar de tecer duras críticas às classes mais abastadas", afirma Malta.
A caricatura da caricatura
Além de analisar a obra de Lobato, o sociólogo Márcio Malta, que também é cartunista profissional, analisou as charges do Jeca Tatu publicadas da extinta revista Careta, que parou de circular em 1960. No trabalho intitulado Jeca na Careta Charges e Identidade Nacional, ele relata que as primeiras representações na publicação aparecem em 1919 (um ano depois do lançamento de Urupês), por ocasião do lançamento da candidatura à Presidência da República de Rui Barbosa, que havia citado o Jeca Tatu em seus comícios como um representante do povo sofrido.
Segundo Malta, apesar de abordarem outras temáticas, as charges, na maioria das vezes, retratam a pobreza do Jeca. "Mesmo sendo uma figura de características particulares, como a vestimenta simples, o jeitão do homem da roça, é interessante notar que as charges retratam, por meio do Jeca Tatu, os sentimentos de todos os brasileiros, não apenas do caipira. O Jeca só atinge esse status de representante do povo porque o povo o aceita, identifica-se com ele", avalia.