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Na charge do Pasquim, o entusiasmo do povo pobre brasileiro é retratado ironicamente: críticas à euforia monocórdica da Copa |
Na charge do Pasquim, o entusiasmo do povo pobre brasileiro é retratado ironicamente: críticas à euforia monocórdica da Copa| Foto:

Estudo

Argentina 1978 é foco de novo estudo

A Argentina será objeto de nova pesquisa de Ernesto Marczal. Ele pretende estudar a relação entre imprensa, população e ditadura no país hermano na Copa de 1978 (sediada naquele país e quando os argentinos vencem sua primeira Copa do Mundo) e comparar com o que acontecia no Brasil naquele momento: a seleção canarinha é eliminada pela segunda vez consecutiva, enquanto o governo militar aqui começava a dar sinais de esgotamento. "São momentos opostos dos países. Por isso, acho interessante relacionar esses dois cenários", diz o historiador.

Publicações

Veja o perfil das revistas analisadas:

O Cruzeiro – Criada pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand, a revista inovou ao criar o conceito da grande reportagem. Era favorável à ditadura.

Manchete – Era a principal concorrente de O Cruzeiro, com perfil semelhante. Apostava em imagens de página inteira. Também era favorável ao regime.

Placar – Nasceu às vésperas da Copa de 1970, foi a primeira revista especializada em futebol do país. Tinha interesse oculto na política, defendendo a profissionalização do esporte, adotando postura crítica ao governo, mas não necessariamente contrária.

O Pasquim – Tipicamente alternativo, o hebdomadário não tinha perfil definido, pois dependia da orientação pessoal dos autores do texto. Era totalmente crítico ao Governo Militar.

  • A revista O Cruzeiro disse que a mobilização que o tricampeonato causou nos brasileiros poderia ser canalizada pelo General Médici

A visão histórica tradicional aponta que a Ditadura Militar aproveitou a euforia do mundial em 1970 para se aproximar da população. Em "O Caneco é Nosso", o mestre em História Ernesto Sobocinski Marczal, membro do Núcleo de Estudo Futebol e Sociedade da UFPR, discorda do conceito já arraigado no país. Por meio da análise de quatro publicações da época, as revistas semanais Manchete, O Cruzeiro, Placar e O Pasquim, Marczal mostra que o desprestígio do debate político durante o campeonato mundial que levou a seleção canarinho ao tricampeonato se deveu mais à paixão da população do que à ação do governo militar.

"As revistas atestam que o envolvimento da população com o futebol era maior do que com a política. Isso não acontecia por indução do governo militar, mas pela pressuposta alienação das massas", explica.

A alardeada máxima de que "o brasileiro nasceu para jogar futebol" explicaria o fenômeno. Uma entrevista do jogador da seleção Gerson para O Pasquim resume o sentimento da população durante a disputa: "O povo podia passar fome nessas seis partidas da Copa do Mundo. Eles passariam fome rindo". Enquanto isso, os jogadores e a comissão técnica conviviam com a pressão pelo título em razão da campanha vexaminosa de 1966.

Mesmo que o amor pelo futebol seja algo cultural, a administração militar não era ingênua e considerava o momento adequado para alimentar a relação futebol e política. "(...) O Estado Militar tentou se aproximar e, na medida do possível, apropriar-se dos valores simbólicos atribuídos ao futebol como forma de aproximação da população, conferindo a legitimidade necessária para efetivação de seus projetos", diz o estudo. O tricampeonato do mundo seria a consagração do "milagre econômico" proporcionado pelos militares – os outros dois títulos, em 1958 e 1962, foram conquistados sob regime democrático.

Dos quatro veículos, O Pasquim, o mais combativo deles, adotou postura crítica. "Olhem aqui, esse negócio de seleção já não está enchendo, não? Por mim, já não aguento mais a cara de general romano do João Havelange [presidente da então Confederação Brasileira de Desportos], que, quando abre a boca, parece que está fazendo planos de batalha para destruir Cartago. A miopia de Pelé, a retina de Tostão, os traumas de Clodô, etc, etc, etc. Todo mundo gosta de futebol, ou quase. Eu também gosto de bebida, mas em certo excesso, dá coma", afirma artigo de Pedro Ferreti.

A Manchete adotava postura menos extrema, mas também deu seu recado à população. "Com a chegada da Seleção Brasileira, Brasília teve a maior festa popular de sua história. Maior do que a de sua inauguração, mais gente do que na posse do presidente Jânio Quadros", dizia o texto da reportagem "Brasília a capital dos campeões". O Cruzeiro também comentou a mobilização: "(...) Assim, de 64 até aqui, nenhum acontecimento se registrou capaz de motivar os brasileiros. A Jules Rimet teve essa virtude, ocasionando uma mobilização (...) que o General Médici [presidente do Brasil] tem condições de canalizar".

A polêmica demissão de João Saldanha

O jornalista João Saldanha nunca omitiu sua preferência pelo comunismo. Mesmo assim, foi técnico da seleção brasileira até alguns meses antes da Copa de 1970 – teria sido escolhido pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD) para diminuir as críticas da população à seleção. Sua demissão é atribuída a uma discussão com o presidente Médici sobre a convocação do centroavante Dario (o Dadá Maravilha) para o mundial.

Mesmo com um staff ocupado em parte por militares, caso do chefe da delegação, o pesquisador Ernesto Marczal não observa indícios significativos de divergências políticas que acarretaram na queda do técnico.

Baseado nos relatos da época, Marczal aponta os motivos da saída do técnico. "Embora Saldanha configurasse um personagem polêmico, o processo de sua demissão não pode ser atribuído como resultado direto de uma interferência política na seleção. O acúmulo de episódios controversos e os recorrentes desentendimentos com as bases de apoio ao trabalho da seleção – jornalistas, membros da Comissão Técnica e da CBD, outros treinadores e jogadores – foram determinantes para a sua saída", diz o texto do historiador.

Aliás, o contexto da demissão de Saldanha respingou no trabalho de Mário Zagallo (comandante da seleção na conquista do mundial). Na avaliação de muitos, ele teve pouca (ou nenhuma) influência na conquista do tricampeonato. "Zagallo enfrentou, em pouco tempo de trabalho, grande rejeição da torcida e questionamentos recorrentes dos veículos de imprensa", diz o texto. A principal reclamação era o fato de o novo treinador defender que Tostão e Pelé não poderiam jogar juntos, o que era considerado uma heresia pela imprensa. Na Copa, contudo, os dois jogadores estiveram juntos e foram destaques do escrete canarinho.

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