A pequena Isabel dos Santos Lopes tem 5 anos. Brinca com irmãos e primos em ruas de terra batida às margens do Igarapé do Tucunduba, um dos 148 cursos de água que cortam Belém do Pará. A favela que se ergueu em torno do canal há mais de 40 anos é formada, na sua maioria, por casas e palafitas de madeira. Sem saneamento básico, todo o esgoto e lixo de 4,8 mil famílias que vivem ali são jogados diretamente no igarapé. A água é escura, cheira mal e em muitos trechos acumula montes de sacos plásticos, embalagens, garrafas pet e até restos de comida.
Na casa de Isabel, a água de torneira chega por canos de PVC que passam dentro do córrego. Muitos deles furados ou mal instalados. Há um ano a água encanada, misturada à do córrego contaminado, deixou Isabel doente. Ela teve diarreia intensa, seguida de vômitos constantes. Passou três semanas internada no Hospital das Clínicas de Belém. "Tive pavor de que ela fosse morrer", conta a mãe, Maria Rita dos Santos. "Dois anos atrás perdi um filho, Davi Salomão, que gostava muito de tomar banho no córrego e acabou tendo dengue hemorrágica. Morreu no mesmo dia em que chegou ao hospital".
Maria Rita, Isabel e as famílias que moram às margens do Igarapé do Tucunduba fazem parte dos 105 milhões de brasileiros sem coleta de esgoto e dos 35 milhões que não recebem água tratada em casa. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 30% dos municípios brasileiros não têm qualquer serviço de saneamento básico. A falta de acesso a água de boa qualidade e a convivência com esgoto a céu aberto levam à proliferação de doenças, como diarreias, esquistossomose, dengue e leptospirose.
Só essas enfermidades causaram 61 mil mortes, em todo o Brasil, nos últimos dez anos. Estima-se que a falta de saneamento esteja diretamente ligada a 65% das internações em hospitais no país. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef), para cada real investido no setor, economizam-se quatro em serviços hospitalares.
Hoje, o governo federal calcula que seja necessário aplicar R$ 420 bilhões no setor durante os próximos 20 anos. Além dos investimentos, o Brasil precisa melhorar a gestão dos serviços. Mais da metade das companhias estaduais de saneamento opera no vermelho, gastando mais do que arrecada. A ineficiência também se revela na água que é desperdiçada: das 27 unidades da federação, 19 perdem mais de 30% do volume tratado em vazamentos e ligações clandestinas. "Esse é um dos problemas mais sérios do país", avalia a urbanista Fátima Furtado, da Universidade Federal de Pernambuco.
Dados do Serviço Nacional de Informações de Saneamento (SNIS) mostram que 19% dos brasileiros não têm abastecimento de água tratada. E mesmo nas localidades onde o serviço existe, ele muitas vezes é deficiente. Quase um quarto dos municípios do país enfrenta racionamentos constantes.
Quanto ao esgoto, mais da metade da população, 53%, não tem coleta. Do pouco que é coletado, menos ainda é tratado: 38%. Ou seja, a grande maioria do esgoto produzido no Brasil acaba sendo jogado diretamente nos rios e lagos. Estima-se que mais de 470 municípios brasileiros estejam com seus mananciais de água comprometidos por causa dessa poluição.
Recursos desperdiçados por má gestão
O Brasil investe cada vez mais em saneamento. De um patamar de R$ 3 bilhões anuais no início dos anos 2000, hoje o governo destina ao setor uma média de R$ 8,4 bilhões por ano. A meta é investir mais R$ 35 bilhões até 2014. Porém, grande parte desses recursos pode acabar desperdiçada pela ineficiência do setor. Faltam engenheiros capacitados nas prefeituras e empresas estatais para fazer os projetos, a maior parte dessas empresas opera no vermelho e o volume de água desperdiçada é imenso.
Da verba total do PAC 2 para saneamento, R$ 35 bilhões, somente R$ 13 bilhões já foram contratados, por falta de projetos, ou pela assinatura de convênio com base em projetos que podem ser considerados apenas "esboços". A Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa) tem 54 obras financiadas pela Caixa Econômica Federal, no valor de R$ 541 milhões; mas 22 delas estão paradas porque os projetos executivos apresentaram vários problemas, como ausência de sondagens do solo e estudos das interferências ambientais e urbanísticas.
"Por causa da celeridade com que foram feitos, os trabalhos acabaram com algumas omissões e erros", afirma Alfredo Barros, diretor de Expansão e Tecnologia da empresa. "A demanda supera a capacidade das empresas". Além disso, toda essa verba teve de ser financiada em nome do governo estadual, porque a Cosanpa opera no vermelho e não pode se habilitar para fazer os empréstimos.
A maior parte das companhias estaduais de saneamento está na mesma situação. Das 26 empresas, 15 são deficitárias, ou seja, gastam mais do que arrecadam. O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades, indica que as operadoras de água e esgoto tiveram prejuízo de R$ 3 bilhões em 2009.
Grande parte das receitas também se perde em vazamentos e ligações clandestinas. Do total do volume de água tratada produzido no país, 37% se perde entre a estação de tratamento e a casa das pessoas. Ou seja, grande parte do trabalho de separar o lodo e adicionar cloro e flúor na água dos mananciais acaba indo pelo ralo.
* Esta reportagem faz parte de uma série preparada pela ANDI, organização não governamental que trabalha com comunicação voltada ao desenvolvimento. A segunda reportagem será publicada amanhã.