“No debate sobre aborto ou sobre o uso de células-tronco, os dois lados invocam esse termo. Isso chama a atenção porque, se um conceito jurídico pode ser invocado pelas duas partes, ele não serve para nada.”| Foto: Divulgação

Ele já advogou em causas polêmicas, às quais qualquer cidadão destinaria bastante tempo se precisasse responder de que lado se colocaria. Deportar ou não Cesare Battisti? Autorizar o aborto de anencéfalos e a pesquisa com células-tronco? Legalizar a união homossexual? O advogado Luís Roberto Barroso forja as respostas, segundo ele, baseado somente no previsto pela Justiça. "O Direito não pode responder em qual momento começa a vida [no caso do uso de células-tronco]: isso é uma questão de fé", afirma ele, que teve de convencer os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a religião não pode influenciar o Direito e que, por isso, as células-tronco deveriam ser usadas para pesquisas em vez de serem simplesmente descartadas. Barroso é o responsável pela palestra magna de en­­cerramento da 21.ª Con­­ferência Nacional dos Advo­gados, que acontece em Curitiba de 20 a 24 de novembro. No evento, ele fala sobre democracia, desenvolvimento e dignidade humana. Em entrevista à Gazeta do Povo, o advogado an­­tecipa um dos tópicos que vai tratar na conferência.

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Barroso passou o primeiro semestre deste ano na Uni­versidade de Harvard, como pesquisador visitante, para tentar especificar o que significa "dignidade da pessoa humana" (tema que vai abordar na palestra). Ele lembra que o STF tem usado o termo até mesmo para justificar a proibição das brigas de galo. "Este é um uso bem singular do conceito, considerado um dos mais ambíguos no Direito atual", afirma. Para o advogado, esse termo tem de ser tratado como um fim em si mesmo e deve estar associado a direitos fundamentais, como à vida, à igualdade e à integridade física e moral. Também deve significar autonomia individual para a pessoa escolher seus projetos e fazer as próprias valorações morais.

De que modo o Direito trata ambiguamente do conceito dignidade da pessoa humana?

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No debate sobre aborto ou sobre o uso de células-tronco, os dois lados invocam esse termo. Isso chama a atenção porque, se um conceito jurídico pode ser invocado pelas duas partes, ele não serve para nada.

Sobre sua pesquisa em Harvard, que trata das decisões jurídicas que utilizaram esse conceito, qual foi a sua conclusão?

Analisei decisões de países bem distintos, como Estados Unidos, África do Sul, Brasil, Alemanha, Canadá. O conceito é usado em alguns conteúdos do Direito, como para o valor comunitário: em quais circunstâncias o poder público e a sociedade podem limitar a autonomia da pessoa em nome de valores que consideram relevantes? Pode limitar em casos extremos, como a pedofilia, porque isso não é socialmente aceitável, por exemplo.

Em que outros casos esse conceito vem à tona?

Há debates com esse conteúdo sobre o fato de o estado proibir ou não a prostituição, se pode ou não dar subsídio assistido a doentes em situação terminal e mesmo sobre a discussão sobre a legalização das drogas leves.

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O Brasil está muito atrás nestes conceitos na área jurídica?

Não. A ideia de dignidade da pessoa humana está tão desarrumada aqui como em outros países. Por isso fiz a pesquisa, para tentar produzir um conceito autônomo e operacional no Direito.

Qual assunto o senhor abordará na 21.ª Conferência Nacional dos Advogados?

Farei um diagnóstico de questões que não estão funcionando adequadamente no país e apresentarei propostas, como em relação ao saneamento básico. Esse é talvez o principal impasse jurídico hoje no Supremo. Questiona-se sobre qual deve ser o poder concedente em matéria de saneamento nas regiões metropolitanas. Como existe um impasse, se é o município ou o estado, ninguém investe. Por isso temos 50% de domicílios no Brasil sem esgotamento sanitário. Isso é grave.

Qual a sua proposta?

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Adotarmos um modelo de gestão compartilhada entre estados e municípios da região metropolitana.

Como foi o caso do tema da anencefalia?

Fui procurado por uma instituição de direitos humanos que me pediu para conceber uma ação que tornasse desnecessário que cada mulher constituísse um advogado e tivesse de pedir autorização a um juiz para interromper a gestação de um feto inviável. Pedi uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), a ser proposta pelo STF, porque é o único tribunal a conceder decisão vinculante. Minha defesa foi a de que a mulher grávida (com bebê anencéfalo) não se enquadra nos artigos do Código Penal relativos ao aborto, porque isso violaria a dignidade da pessoa humana.

Por quê?

O diagnóstico de anencefalia é feito no terceiro mês. Obrigar a mulher a ter uma gestação até o nono mês seria obrigá-la a carregar no ventre, por mais seis meses, o filho que ela não vai ter. O parto deixaria de ser uma celebração da vida, seria um ritual de morte.

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E sobre as uniões homoafetivas?

Adaptei uma ação que já havia feito para ser proposta pelo go­­vernador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. E a justificava para a ação ser impetrada pelo governador foi a de que o estatuto público dos servidores do Rio permite ao servidor tirar licença para tratamento de saúde do cônjuge. Era preciso saber se o cônjuge do estatuto valia também para uniões do mesmo sexo.

No caso das células-tronco, o senhor foi procurado por um grupo de pesquisadores para propor a ação. Conseguiu ga­­nhar no Supremo com uma votação apertada. É difícil separar a religião do Direito?

Se discutia (entre juristas) o uso do embrião, porque este já havia sido fecundado, e falava-se que, onde há fecundação, há vida. Começou, então, a discussão de onde começa a vida. Defendi no Supremo que a pergunta certa não era essa, porque esta resposta o Direito não pode dar, por ser uma questão de fé. Portanto, não há resposta certa para pergunta errada. A pergunta deveria ser o que fazer com os embriões que existem e que seriam descartados, ou seja, não seriam mais usados em útero materno, então, jamais virariam uma pessoa humana. É melhor deixá-los congelados perenemente ou destiná-los à ciência para minimizar a dor das pessoas? Acho que não pode haver dúvida nesta resposta.

E o caso Cesare Battisti?

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Ao contrário dos outros, este não era um caso difícil do ponto de vista jurídico. Era preciso saber se o refúgio político, concedido pelo governo brasileiro, era um ato político ou, o que chamamos em Direito, "vinculado". Se fosse político, não caberia ao Judiciário apreciar o seu mérito. Não há dificuldade na resposta. Em matéria de extradição, a palavra final é sempre a do presidente.