Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Entrevista

“O corporativismo judiciário é daninho”

“O modelo vigente de controle de constitucionalidade por uma Corte Suprema (como ocorre com o STF) poderia servir para os séculos 18 e 19, mas não serve para o século 21” | Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo
“O modelo vigente de controle de constitucionalidade por uma Corte Suprema (como ocorre com o STF) poderia servir para os séculos 18 e 19, mas não serve para o século 21” (Foto: Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo)

Nas últimas cinco décadas, poucas pessoas participaram tão ativamente do debate e da construção do Direito brasileiro quanto o jurista paulista Sér­­­­gio Sérvulo da Cunha. For­­­ma­­­do em Direito, em 1953, pela Universidade de São Paulo (USP), ele foi procurador do Estado de São Paulo, coordenador do Bureau de Acom­­­­pa­­­nha­­­­mento da Constituinte de 1987, instituido pela Ordem dos Advo­­­gados do Brasil (OAB), e chefe de gabinete do Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos – durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Atu­­al­­mente, atua como advogado em Santos (SP).

Autor de diversos livros sobre Direito Constitucional, Sérvulo da Cunha lançou neste ano uma obra de cunho mais filosófico-jurídico – ele também é formado em Filo­­­sofia: Uma deusa chamada Jus­­­tiça (Editora WMF Martins Fon­­­tes). "Essa deusa esquiva, da qual se poderia talvez dizer – como da felicidade disse o poeta – que ‘está sempre apenas onde a pomos, e nunca a po­­mos onde nós estamos’", es­­­­creve na introdução do livro. Nesta entrevista, ele critica diversos aspectos da vida jurídica brasileira, como o formalismo excessivo do Judiciário e a composição do Supremo Tribunal Federal (STF).

Quais são os principais atributos dessa deusa chamada Justiça, de que o sr. trata em seu mais recente livro? Ela vem sendo reverenciada no Brasil?

A Justiça é um valor pessoal, social e institucional. O respeito que lhe tributamos depende do índice geral de moralidade, e a moralidade está sabidamente em crise, não só no Brasil.

No segundo capítulo desse livro, o sr. pergunta: te­­­mos direito a um tratamento justo? E então, temos esse direito?

Nesse segundo capítulo tentei demonstrar que temos, sim, direito a um tratamento justo, não só por parte do governo mas por parte do outro, qualquer que seja a relação que nos envolve. Todo ser humano já sentiu em sua pele como é duro ser injustiçado.

Em outro dos capítulos, o sr. trata da Justiça e do formalismo. O sr. considera que a Justiça peca pelo excesso de formalismo?

Não confundamos Justiça com Judiciário. O Judiciário tem tanto a ver com a Justiça quanto um hospital tem a ver com a saúde. O Judiciário, sim, peca pelo excesso de formalismo. Costuma-se confundir a dogmática jurídica com a repetição estulta de fórmulas. As pessoas negam-se a decidir se inexiste uma norma prevendo expressamente a hipótese.

O sr. se formou em Direito em 1958. Como avalia o Direito e a Justiça brasileiros nas últimas cinco décadas?

As modificações no Direito correm paralelamente às transformações da sociedade, e o Brasil mudou muitíssimo nas últimas cinco décadas. Acredito que a evolução sempre se faz nos limites do respectivo contexto, ou seja, evolução é adaptação; e acredito também que em geral ela se faz para melhor. Nos últimos 50 anos, o maior marco da nossa história jurídica foi a Constituição de 1988 e a estabilidade política a que chegamos.

E qual é a sua avaliação da Consti­­tuição, 21 anos depois da promulgação da Car­­ta?

A Constituinte de 1987, embora batizada nas águas impuras da ditadura, foi legitimada por uma pujante participação popular. De 1988 para cá houve o refluxo dessa participação e a oligarquia desfigurou o texto constitucional, readaptando-o aos interesses da sua dominação. A mais urgente necessidade de mudança no texto em vigor diz respeito à correção da sua excessiva flexibilidade.

E o que falar da Emenda Cons­­­titucional n.° 45, de 2004, a chamada "Reforma do Judiciário" – que instituiu a súmula vinculante, por exemplo?

Nessa emenda pouca coisa se salvou. Em inúmeros textos venho condenando a súmula vinculante e a repercussão geral, porque ofendem o acesso à Justiça.

Mas se não forem institutos co­­­mo os da súmula vinculante e da repercussão geral, quais são as saídas para se reduzir o número enorme de processos que se arrastam no Judiciário brasileiro – e que só terminam quando chegam aos tribunais superiores?

A jurisdição constitucional, por definição, é coextensiva ao Direito Constitucional material. O povo não entregou aos tribunais superiores, o poder de reduzi-la. A litigiosidade excessiva tem suas raízes mais profundas na extrema desigualdade social. Instaura-se em seguida um círculo vicioso: há muitas demandas porque o Judiciário é moroso, e o Judiciário é moroso porque há muitas demandas. O modelo vigente de controle de constitucionalidade por uma Corte Suprema (co­­­mo ocorre com o Su­­­­­premo Tribunal Fe­­­­­deral) poderia servir para os séculos 18 e 19, mas não serve para o século 21.

O que o sr. pensa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)? A atua­­­ção do CNJ tem sido criticada por muitos magistrados, que acusam o órgão de extrapolar suas funções...

Desde a Constituinte, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vinha lutando pelo controle externo do Poder Judiciário. Não são sérias as críticas advindas desses setores que sempre se conformaram com práticas comprometedoras do Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça é o que de mais auspicioso aconteceu nos últimos anos, no Brasil, e merece o apoio entusiástico de todo cidadão.

Recentemente, foi muito debatida a escolha do ex-advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli, para uma vaga de ministro do STF. O que o sr. pensa da forma como o Supremo é composto, mediante indicações políticas?

Toda e qualquer fórmula que se encontre para indicar membros para o Supremo Tribunal Federal será necessariamente política. Sempre fui contra a vitaliciedade no STF. Durante a Constituinte, o Conselho Federal da OAB elaborou proposta mediante a qual a composição do STF se renovaria parcialmente de tempos em tempos, mais ou menos como acontece com o Senado.

Ainda sobre a composição das cortes, o que o sr. pensa do quinto constitucional (re­­­­­serva de vagas nos tribunais a advogados e membros do Ministério Pú­­­blico)?

O corporativismo judiciário é daninho, e fonte da maioria dos vícios da prestação jurisdicional. Acho que a carreira da magistratura deveria se encerrar na 1.ª instância. As funções jurisdicionais nas instâncias superiores seriam desempenhadas por membros provenientes das carreiras jurídicas em geral, e mesmo das carreiras políticas ou administrativas, por prazo determinado. Isso é mais do que o quinto.

Serviço:

O livro Uma deusa chamada Justiça pode ser encontrado por R$ 36 no site www.wmfmartinsfontes.com.br.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.