Apagam-se as luzes, o projetor é ligado. Silêncio na sala. Surge na tela Lélio, um rapazote qualquer. Aos 17 anos, ele ganha de presente de aniversário da mãe uma assinatura da revista francesa Cahiers du Cinéma, baluarte da crítica literária e a mais inspirada, se não a mais importante, publicação do gênero. Há um porém: os textos são escritos em francês e, para quem não entende patavinas do idioma, caso do adolescente cinéfilo, podem soar como grego. Corte para o jovem debruçado sobre as edições, jogadas em cima da mesa. A empolgação é tamanha que ele aprende francês por conta e, não satisfeito, passa a escrever suas próprias críticas. The End. Sobem os créditos. Ligam-se as luzes.
Só o início da trajetória do crítico de cinema curitibano Lélio Sotto Maior Jr., por si só, renderia um filme, embora os personagens mais pitorescos e as reviravoltas viriam anos depois. Nascido na capital paranaense, em 1946, sob o signo de Áries e ascendente em Escorpião – informações importantes, como se verá mais tarde –, Lélio passou, ainda jovem, da condição de mero espectador para estudioso feroz da sétima arte, levando consigo a tiracolo as impressões e ensinamentos dos jovens cineastas da Nouvelle Vague francesa.
Nem havia atingido a maioridade e já falava, com desenvoltura e reverência, da importância de autores europeus e americanos como Alfred Hitchcock, Vincente Minelli e Alan Resnais – nomes que, na então Curitiba provinciana da década de 1960, pouco significavam mesmo para os cinéfilos iniciados.
Apesar da fixação pela leitura das Cahiers e quaisquer outras publicações que pudesse colocar as mãos, não fazia o tipo intelectual concentrado e reservado. Era figurinha carimbada nas discussões que rolavam nos poucos cineclubes da cidade, sendo frequentador assíduo do Cine de Arte Riveira (que funcionava em espaço anexo ao Colégio Santa Maria) – na década seguinte, a partir de 1975, seria um dos entusiastas da recém-criada Cinemateca, então no Museu Guido Viaro.
Não raro, interrompia palestrantes e os críticos ditos “profissionais” para dar suas próprias opiniões inflamadas a respeito, conquistando a admiração de alguns e impaciência de outros. No processo, arregimentava para perto de si uma geração de cinéfilos iniciantes, que o buscavam de olho em suas impressões e, é claro, em suas raras revistas importadas.
“O Lélio sempre foi muito acessível. A gente era uns moleques, enquanto ele era mais velho, mas sempre nos tratava de igual para igual, nunca estabeleceu uma hierarquia intelectual ou foi arrogante. Conquistava admiração naturalmente. Nós o enxergávamos como uma grande fonte de informação, ainda mais numa época pré-internet, quando era muito difícil ter acesso a qualquer coisa”, relata o cineasta Fernando Severo, atual diretor do Museu da Imagem e do Som do Paraná (MIS-PR).
A desenvoltura e a frequência insistente com que participava das discussões sobre cinema e o então acanhado cenário cultural da cidade conquistou logo de cara duas figuras influentes que o “apadrinharam” e seriam fundamentais para dar vazão a seus textos: o jornalista Aramis Millarch e o escritor Valêncio Xavier.
“O Aramis foi quem me conseguiu um ‘passe livre’ pra eu frequentar os cinemas da cidade. Assistia a tudo que era possível”, conta Lélio. O que não era pouco, visto que o ofício de crítico lhe rendia admiração, mas grana no bolso, que é bom, nada.
Os agitadores
Ciceroneado por figuras como essas, acabou sendo natural que, mais cedo do que tarde, Lélio acabasse dando de cara, em um festival universitário, com um tal Paulo Leminski, na segunda metade da década de 1960. A admiração pelo poeta foi instantânea, reforçada pelos gostos em comum e pelo rótulo que ambos compartilhavam, de “agitadores”. “Vivíamos com discos embaixo do braço. Naquela época, eramos loucos pela Inglaterra, Rolling Stones, David Bowie”, lembra Lélio.
Faziam parte da turma dessa turma da contracultura local personagens como Ivan da Costa, Alice Ruiz, Wilson Bueno, Carlos João e Paquito, um dos amigos mais próximos de Lélio. “O Paquito era o nosso Ivan, O Terrível, que fazia as coisas mais ultrajantes”, resume ele, sem entrar em detalhes.
Ivan, Lélio e Leminski, inclusive, levariam a vontade de “revolucionar a província” tão a sério a ponto de criar o Grupo Áporo, em 1967, uma espécie de movimento que queria “cerrar fogo na produção intelectual para afastar a pasmaceira que reina na cidade”, como recorda o jornalista Toninho Vaz. Planejavam concentrar a atividade intelectual em literatura, cinema e música e, para deixar claro suas intenções, chegaram a escrever um manifesto inflamado. Que poucos leram, diga-se de passagem. “Nenhum jornal quis publicar”, conta Lélio.
“Nos anos 60 e 70, Curitiba era uma cidade absolutamente careta, ao extremo. Qualquer figura controvertida, como diziam por aí, tinha a cabeça posta a prêmio. O Paulo e o Lélio eram uns dos poucos que enfrentavam a sociedade por meio de todo um pensamento em nível político e estético e com uma nova postura ética em relação às coisas. Faziam parte de um grupo de vanguarda de pensadores e contestadores”, recorda o fotógrafo Orlando Azevedo, ex-baterista da banda curitibana A Chave, formada no final da década de 1960.
Na época, Lélio transitava pela cidade tal qual personagem de história em quadrinhos, com direito a alter ego. Durante o dia, cumpria horário e batia cartão como funcionário público do estado, exercendo o cargo de escrevente datilógrafo. Fazia ofícios e listas de remessas. À noite (e com muita frequência, nas madrugadas), fazia ronda nos bares e cinemas com Leminski e os demais, separando nos intervalos um momento para voltar à máquina de escrever, desta vez para digitar suas críticas.
Os astros
Foi também neste período que Lélio abraçou a astrologia com uma fixação febril, que sustenta até hoje – segundo ele, iniciado por Alice Ruiz, que “manjava do assunto como ninguém”. Logo passou a levar as datas e horários do nascimento dos cineastas em consideração para avaliar suas obras – o que foi visto como uma excentricidade por alguns.
Hoje, no alto de seus 69 anos, diz saber de cor e salteado o signo de mais de 100 diretores. E, independente do interlocutor, ao iniciar uma conversa com um desconhecido dispara logo um “você é de quê?”, para então emendar “já assistiu a O Ano Passado em Marienbad, do Resnais?” Se não, é melhor fazer a lição de casa.
No seu canto
A memória de Lélio está ótima, mas lhe falta disposição para frequentar cineclubes e salas de cinema com a mesma rotatividade de outrora. Nega o rótulo de recluso, embora reconheça que não gosta muito de sair do apartamento em que mora, às margens da Avenida Paraná, no Cabral. Mesmo assim, pode ser visto com certa frequência caminhando no Parque Bacacheri ou visitando a Panificadora Piegel, sempre na companhia do filho Alan Quadros Sotto Maior, seu fiel escudeiro. E, seja fora ou dentro de casa, sempre trajado a rigor, com seu chapéu panamá.
O quarto é seu reduto, onde diz assistir a até dez filmes por dia, em maratonas que dariam inveja mesmo aos adolescentes mais ávidos por séries do Netflix. As gavetas e armários estão cheios de fascículos encadernados de modo artesanal que reúnem críticas e ensaios escritos ao longo da vida – na sua conta, foram mais de 500 textos publicados em jornais e livros desde que folheou suas Cahiers pela primeira vez.
Seu primeiro livro, Ci(s)ne, que reúne ensaios redigidos entre 1964 e 1969, foi publicado via MIS-PR, na década de 1980, com a ajuda do escritor e cineasta Valêncio Xavier. No prefácio da obra, o jornalista Aramis Millarch sintetiza com clareza única a importância do mais engajado crítico curitibano que já passou por essas terras: “Lélio procurava, em seus textos objetivos, elétricos e inteligentes, abrir as cabeças dos espectadores para um cinema que, visto apenas como comercial, trazia, entretanto, grandes realizadores”.
Prova disso era a defesa apaixonada que fazia do comediante Jerry Lewis. “Uma das maiores polêmicas que enfrentei foi considerá-lo um gênio, enquanto outros o achavam um palhaço”, completa Lélio.
Resgate
Mesmo quieto no seu canto, há uma série de cinéfilos, estudantes e críticos da “nova geração” que têm se mobilizado para “resgatar” Lélio. Tarefa não muito fácil na prática, posto que ele nunca teve um editor fixo ou se preocupou em catalogar seus textos – apesar de que alguns volumes “caseiros” estão disponíveis na Biblioteca Pública do Paraná, levados para lá pelo próprio Lélio. “Localmente, o Lélio foi quem levou mais a sério, a longo prazo, essa tradição da crítica cinematográfica, de entender a crítica como um projeto. Acima de tudo, ele é um cinéfilo maravilhoso, de uma paixão incrível por cinema”, afirma o cineasta curitibano Rafael Urban.
O crítico e jornalista Nikola Matevski também está entre os engajados e “seguidores” de Lélio. “Ele tem uma grande clareza de colocação, consegue sintetizar suas ideias sobre cinema de forma muito peculiar. Seus textos são breves, sintéticos, mas ao mesmo tempo profundos. Quem já tentou escrever críticas dessa forma sabe o quanto isso é difícil”, diz.
Há esperança, porém, de que textos inéditos venham por aí. Semana passada, a velha máquina de escrever de Lélio estragou – pela centésima vez, ao que parece. Depois de muita discussão, o filho, Alan, o convenceu a passar a usar, pela primeira vez, um notebook. Enfim Lélio cairá na tal da “rede”, para ser curtido e compartilhado. E, quem sabe, retomar os planos de “revolucionar a província”.