Como foi possível que, debaixo de uma regra expressa da Constituição de 1988, segundo a qual “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibisse, em 2022, a exibição de um documentário sobre o atentado contra o ex-presidente Jair Bolsonaro antes do segundo turno das eleições? Uma decisão do tipo seria compatível com parâmetros internacionalmente consolidados de proteção da liberdade de expressão? Haveria situações em que medida tão extrema se justificaria? Se sim, estariam elas presentes na ocasião?
Foi esse o tema do quarto painel do congresso “Liberdade de Expressão: o debate essencial”, realizado em Brasília em 27 e 28 de setembro. O evento foi organizado pela Gazeta do Povo e pelo Ranking dos Políticos com o apoio do Instituto Liberal, do Instituto dos Advogados do Paraná e da Federação Nacional dos Institutos dos Advogados (Fenia). Vozes influentes no tema da liberdade de expressão do Brasil e do mundo participaram de seis painéis sobre o assunto.
Para discutir a decisão do TSE que proibiu a produtora Brasil Paralelo de exibir o filme “Quem mandou matar Jair Bolsonaro?”, foram convidados Patrícia Blanco, presidente do instituto Palavra Aberta, que atua em prol da liberdade de imprensa; o advogado Rodrigo Xavier Leonardo, estudioso e atuante na área; Fernando Toller, professor de direito constitucional da Universidade Austral, de Buenos Aires, na Argentina; e Todd Henderson, consultor, jurista e professor da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. A mediação ficou a cargo de Fábio Losso, doutor em direito civil pela USP.
Logo no início, uma questão intrigou os debatedores: seria a decisão do TSE um caso de censura prévia, instituto que remonta a períodos autoritários da história brasileira, ou um mero “embargo”, dado seu caráter temporário e com o alegado fim de evitar desequilíbrio na disputa eleitoral, segundo a decisão do TSE?
O termo “embargo” foi introduzido na roda de conversa por Patrícia Blanco, que, mesmo em dúvida sobre a razoabilidade da medida, presumiu que ela teria se baseado numa resolução da Corte Eleitoral, aprovada em dezembro de 2021, que vedou a divulgação de “fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral”. O problema, mais tarde notado por outros debatedores, é que o próprio TSE não conhecia o conteúdo do documentário, para afirmar se conteria ou não alguma falsidade.
“Eu não entendo como sendo uma censura, entendo como sendo um embargo, um embargo temporal, no qual ele [o TSE] estabeleceu que aquele documentário não podia ser veiculado naquele período [que antecedeu o segundo turno da eleição presidencial], mas poderia ser veiculado depois. Eu não sei qual é o marco legal, e perguntaria para os juristas se isso é censura prévia, se o embargo é possível, se é tutela antecipada”, questionou.
Antes, ela lembrou que não só a Constituição proíbe a censura, mas também a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que estabeleceu que conteúdos só podem ser objeto de responsabilização, caso configurem algum ilícito, “a posteriori”, ou seja, após sua manifestação.
Depois, lamentou que tenha ressurgido no Brasil um outro tipo de censura, não centralizada e executada por um órgão estatal, mas dispersa e privada, que se concretiza naquilo que se conhece como “cultura do cancelamento”, e que consiste em campanhas massivas nas redes sociais de silenciamento de opositores políticos e ideológicos. “Ela acaba promovendo algo muito danoso: a autocensura, a inibição da possibilidade de falar, o medo que qualquer pessoa tem de contribuir para o debate público. Você pode ser execrado pelas suas ideias”, disse.
Em sua exposição, Fernando Toller elencou elementos que caracterizam uma censura prévia: um procedimento sistemático que analisa de forma antecipada e obrigatória o que lhe é submetido, aprovando ou não determinado conteúdo, sendo que a mera omissão de um ente fiscalizado em sujeitar alguma publicação a seu exame já o torna ilícito.
Além disso, avalia tais conteúdos com base em termos vagos e imprecisos em temas políticos, morais ou religiosos. É universal, pois examina tudo que lhe é submetido, e suprime manifestações de forma sumária, sem processo, sem publicidade e direito ao contraditório, cabendo ao censurado, posteriormente, provar sua inocência.
Ainda que o TSE não seja um órgão que aplique procedimentos do tipo, Toller disse que a decisão que suspendeu a exibição do documentário reproduz o que de pior existe na censura prévia. “Encontrei uma quantidade de afirmações surpreendentes”, disse, dando como exemplos “acusações” de que apoiadores de Bolsonaro estariam amplificando, nas redes sociais, a difusão de conteúdo para seu eleitorado; ou de que Carlos Bolsonaro, filho do ex-presidente, teria milhões de seguidores. “Que delitos são esses?”, ironizou.
Ao comentar a decisão, Todd Henderson admitiu ter ficado “confuso”, por não saber o que haveria de errado com a eventual exibição do documentário. “Não há alegações do que seria verdadeiro ou falso em seu conteúdo”, disse, refletindo o fato de que, como o conteúdo era desconhecido, não daria para saber se os produtores acusariam ou não alguém como suposto mandante do atentado contra Bolsonaro.
O americano também criticou a proibição da exibição no momento mais decisivo da campanha, a pouco dias da votação. “Os eleitores querem informação antes da eleição. Eles não podem desfazer o voto. Então, eles querem saber sobre algo agora, não depois do ‘embargo’”. Respondendo a uma das questões propostas, ele disse que, nos EUA, “definitivamente” uma decisão como a do TSE não seria compatível com os padrões de proteção à livre expressão.
Lá, leis e regulações que tentaram impor “embargos” antes das eleições foram derrubadas pela Suprema Corte. “Nos EUA, o Estado não pode decidir que livros podem ser publicado ou que filmes podem ser vistos”, disse, reproduzindo o entendimento da maioria dos ministros. Ressalvou que a minoria admitia restrições e que elas ainda são comuns em órgãos regulatórios da economia, mas não na política, “o território mais sagrado da primeira emenda”, em referência à cláusula da Constituição americana que protege a liberdade de expressão.
No debate, Rodrigo Xavier foi o mais eloquente em classificar a decisão do TSE como censura prévia, prática comum nos períodos de regime autoritário no Brasil, mas expressamente vedada pela Constituição de 1988.
Ele ainda rebateu o argumento, levantado por Patrícia Blanco, de que a Corte poderia se valer da resolução que proibiu a divulgação de “fatos sabidamente inverídicos” ou “gravemente descontextualizados” para suspender previamente a exibição do documentário. “Dentro de um ordenamento jurídico, é uma norma muito específica e muito abaixo da Constituição Federal, que é clara, nos artigos 5º e 220, de que é vedada a censura”, disse.
Ele reiterou o fato de que os ministros não conheciam o conteúdo do filme. “A ilicitude da manifestação do pensamento foi determinada sem conhecer o conteúdo do pensamento. Essa distinção entre ‘censura prévia’ e ‘embargo’, sem conhecer o conteúdo, é algo estranho à nossa tradição jurídica. Você não tem a figura do ‘embargo prévio’. O que talvez a gente tenha é uma tentativa de usar outra palavra que não censura, que é uma palavra muito forte. À luz do nosso sistema constitucional, não temos como classificar isso de outro modo senão como censura prévia”, insistiu o advogado, lembrando que, no próprio julgamento, a ministra Cármen Lúcia mencionou a expressão, embora outros ministros tenham negado que a decisão impusesse uma “censura prévia”.
Ele registrou que, no direito brasileiro, é possível a responsabilização posterior por conteúdo ilícito, e mesmo a concessão de “tutelas inibitórias” para impedir a continuidade de algum dano. Mas, no caso da Brasil Paralelo, não havia qualquer prova de que haveria ilícito no documentário.
Concluiu que a decisão representou um retrocesso na liberdade de expressão e defendeu que regras que eventualmente restrinjam esse direito sejam aprovadas em lei, antes do processo eleitoral, e não por resolução do TSE no meio desse período.
“E nem o Congresso Nacional pode determinar a censura prévia. Estamos diante de uma cláusula pétrea. Esse era um ponto que não poderia estar se discutindo em 2023. No final das contas, por melhores que sejam os interesses, o fato de isso ter acontecido para preservar a democracia, coloca em risco a própria democracia. Não se trata de fazer uma caça às bruxas ou qualquer crítica pessoal a quem quer que seja, mas esperamos que o Brasil tenha muitas eleições pela frente e que esse tipo de situação não se repita”, finalizou.
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