Com algum esforço, ainda é possível encontrar quem saiba de cor os versos de A cruz da estrada, de Castro Alves, que por décadas ganharam as páginas das cartilhas escolares. Nos tempos em que o poema se fazia obrigatório, a imagem de um cruzeiro em meio ao caminho não era de todo estranha. Os pupilos sabiam do que se tratava. Hoje, seria preciso um powerpoint do professor. E ele mesmo teria dificuldade em dizer onde ainda encontrar um desses tesouros da religiosidade popular.
Em miúdos, cruzeiros, oratórios, grutas e aquelas capelinhas nos frontões das casas estão em extinção. Pior somem do mapa antes mesmo de terem sido estudados. Erra quem afirma serem símbolos menores, ignorando o que diz o sociólogo Riolando Azzi sobre as particularidades do "catolicismo sem padre", tão próprio do Brasil. A expressão serve como uma luva para explicar o fetiche por objetos e espaços devocionais extraoficiais, pródigos num país com povo de baixa instrução e poucos religiosos para corrigir a fé, restando o consolo das lapinhas e fitinhas.
Tombado
Na Grande Curitiba, apenas um desses endereços de devoção à moda antiga está tombado pelo Patrimônio Histórico o "Oratório São Carlos Borromeo", plantado numa picada de chão da Colônia Gabriela, reduto de 50 famílias em Almirante Tamandaré. É de 1939. O tombamento, de 1979. Foi erguido numa situação típica: durante uma praga de gafanhotos que arruinava a lavoura, por sugestão do missionário italiano Natal Pigato. Há entre as famílias da região como os Granato quem ainda conte o episódio, em detalhes, mais de 70 anos depois.
Gafanhotos, não mais. Rezar em redor do oratório, só de vez em quando, e para pedir a São Carlos outro milagre o asfaltamento da Rua das Laranjeiras, uma subida empoeirada, cuja recompensa, para quem a vence, é encontrar o inesperado oratório e uma bela vista de Curitiba.
Difícil nas vizinhanças dos oratórios e cruzeiros quem não saiba citar pelo menos mais um ou dois endereços semelhantes. Levanta-se quase sempre a mesma hipótese ou os monumentos sumiram, ou foram privatizados. A segunda opção é a menos trágica. A reportagem da Gazeta do Povo identificou uma dezena desses espaços. A contar por essa amostra, pode-se dizer que os que se mantêm assim estão graças aos que os adotaram. Ignorados pelo Estado e pela própria Igreja Católica que, de acordo com a Cúria Metropolitana, não tem qualquer sorte de registro a respeito , dependem da piedade dos cidadãos comuns.
Procissão
Há algumas narrativas de fato impressionantes. Na Colônia Rebouças, em Campo Largo, existe um oratório mais do que centenário, dedicado a São Marcos Evangelista. Quem fala a respeito é o líder comunitário Mário Fedalto, 45 anos, sobrinho do arcebispo emérito dom Pedro Fedalto, ali nascido.
Em 1884, uma "peste" matou 13 italianos, que se instalaram naquele vale depois de trabalhar na construção da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá. Assustados, os moradores saíram em procissão, passando com velas, onde houvesse enfermos. Conta-se que depois das rezas ninguém mais morreu. A devoção, no entanto, continuou, todo dia 25 de abril, o que faz dela, com folga, uma das mais antigas manifestações públicas de fé no Paraná. Seriam 129 anos de reedições ininterruptas. Difícil é saber há quanto tempo o pequeno oratório pintado em vermelho está ali. Listá-lo e investigá-lo não está na ordem do dia.
A procissão de São Marcos faz parte da cultura imaterial do estado. Mas há historietas mais caseiras, como a dos dois oratórios da Rua Padre João Wislinski, no Santa Cândida. De acordo com os moradores, ambos existem faz mais de 100 anos.
O dedicado a São Roque, na esquina com a Rua Maria Noemia dos Santos, sofreu um abalo quando a imagem original, em madeira, foi roubada. Colocou-se uma de gesso no lugar, "mas o povo sumiu", conta o pedreiro Roque Walesko, 80 anos, cuidador do oratório dedicado a seu padroeiro. O lugar agora serve de ponto de oferenda para cultos afro-brasileiros, fartos naqueles altos da cidade. Não há notícia de conflito religioso. Mas nem sempre foi assim.
Dois quilômetros adiante, na altura do número 240, há um oratório ainda mais antigo, um dia dedicado a Nossa Senhora de Czestochowa, ou de Monte Claro, Virgem negra que é padroeira dos poloneses, etnia que colonizou o bairro. Teria sido erguido pela família Klenk, em fins do século 19. Conta-se que, décadas depois, as primeiras oferendas de umbanda e candomblé levaram à retirada do ícone, hoje num museu particular.
Trinta anos atrás, uma vizinha do oratório a dona de casa Filomena Kachel Schluga, 83 anos, dissolveu o perigo de uma guerra santa. Ela foi à cidade de Aparecida e trouxe uma imagem da Padroeira do Brasil, outra Virgem negra. Agradou a polacos e brazucas. Há relatos de graças alcançadas. O pedido dos moradores, no entanto, se dirige agora à prefeitura: para que proteja os oratórios da Rua Padre João Wislinki. Há de receber em dobro.