José Avelar de Melo com o fichário dos fregueses: política e cultura no “túnel da catedral”| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Desafio

Quem disse que acabou?

O ano de 2014 não vai deixar muitas saudades para José Avelar de Melo. O comerciante passou sete meses internato no Hospital Vita, sendo dois meses na UTI – vitimado por uma infecção severa. "Em meus delírios participei até da Queda da Bastilha. Tudo o que li nas revistas de história me ajudou a passar o tempo quando estava inconsciente", brinca. Ao receber alta, entendeu ter chegado a hora de encerrar outro expediente – o da "banca". O mercado anda arisco para o setor de impressos. O aluguel comia a aposentadoria. Fim de jogo.

"Tudo culpa da farmácia", protesta a filha Ana Paula, sobre os estabelecimentos que vendem de tudo, pondo os demais varejistas com o penico na mão. Para a freguesia do "Nanicão", codinome da "Banca do Melo", o vilão atende por outro nome – a internet. "Os jovens vêm tudo na rede. Até as fotos da Playboy", comenta o jornalista e jornaleiro Gregório de Bem, dono da "Banco do Bem", uma das últimas "banquinhas românticas" da cidade. Fica na ciclovia do Hugo Lange, tem espaço para os leitores sentarem e conversarem. "Todos com mais de 35 anos."

O historiador Vidal Costa – freguês do Melo desde quando não tinha as frondosas barbas de hoje –acredita que o inferno das bancas de revistas e de jornais não é a internet, são os que vendem a ideia de que o mundo virtual venceu a parada. "Quem disse?", provoca. Para Vidal os leitores de impresso não sumiram do mapa, mas passaram a ser ignorados. "As bancas são legítimas, mas não batem como esse projeto de futurização da humanidade que está por aí. Estão supervalorizando o digital."

O arquiteto Key Imaguire Júnior – que conheceu e travou amizade com Vidal na "Banca do Melo" – passa pelos mesmos perrengues. Colecionador aplicado de revistas especializadas e de quadrinhos (ele é nada menos do que o criador da Gibiteca de Curitiba), sente cada vez mais dificuldade em encontrar fornecedores. Além das facilidades da rede, que inibe comerciantes tradicionais, sente a hiperespecialização, voltada para públicos mais dirigidos. Essa tendência manda para a cova os assuntos capazes de agregar pessoas politizadas, dispostas a fazer amigos via leitura. "Tem revista que trata só de unhas", exemplifica.

Em tempo – não tomem por amargo nenhum dos fregueses órfãos da banquinha. Sentem saudade, é justo. Mas nada de nostalgia regada a naftalina. "Temos reconhecimento por algo que foi bom", resume Vidal, num brinde ao Melo.

CARREGANDO :)

Eis o homem

Tratorista e estradeiro

Com a idade, José Avelar de Melo ficou a cara do presidente Getúlio Vargas – têm, inclusive, a mesma altura, 1,5 metro. Mas o papel no cinema ficou com Tony Ramos. Melo não se daria bem com o sotaque gaúcho do líder. É sergipano, castiço, com passagens por lugares como Barra do Azeite, Anta Gorda, Poço dos Bois e Cedro de São João. "Nasci numa bodega, meu pai era cabo eleitoral. Tinha dois rádios na localidade. Quando Getúlio entrava no ar, ninguém dava um pio", lembra. Mas o comércio tardou a vingar para o sertanejo. Em 1956, aos 18 anos, tornou-se tratorista e iniciou longa vida estradeira. A folha corrida inclui as BRs 101 e 116, a Castello Branco e a Raposo Tavares; ligações em cidades como Jacupiranga, Caraguatatuba, Paraibuna (SP); Ponta Grossa, Imbituva, Guarapuava (PR). Soma quase 900 quilômetros de rodovias construídas, "e duas hidrelétricas", a bordo de tratores "992, 988, 966, 944, D8, 631, 637, DW15, 619". Melo é preciso. Num desses caminhos conheceu a alagoana Lúcia, com quem teve três filhos. "Um dia, me aborreci". Pegou o dinheiro, fez uma casa grande no Tingui, em Curitiba, e comprou uma banca de revistas. Era 1979. "Não sabia nada do assunto. E foi ótimo."

"Não espalhe...", escutou o comerciante José Avelar de Melo, o Melo, no início dos anos 1980, de uma moça pequena que entrou ligeira na sua banca de revistas. Os olhos verdes não deixavam mentir: era ela, a Bruna Lombardi, como que saída por encanto das capas dos magazines que estampava às pencas naquela semana. Obedeceu. Fez o troco. Depois a viu sumir na Galeria Júlio Moreira, no Centro de Curitiba, feito uma loirinha de Santa Felicidade. "Dá para acreditar?", pergunta o homem.

Publicidade

Que Bruna Lombardi, Marco Nanini, Sérgio Paulo Rouanet, Ziraldo passaram – disfarçados ou não – pela "Banca do Melo", não é impossível de acreditar. O difícil é aceitar que a banquinha fechou depois de 35 anos de serviços prestados à arte, ao jornalismo e ao entretenimento, deixando o rastro de centenas de leitores, em especial de quadrinhos. O óbito data do dia 16 de novembro, depois de quatro anos de agonia.

A morte anunciada se deu em 2010. Com a reforma da Galeria Júlio Moreira – o "túnel atrás da catedral", como muitos dizem –, Melo recebeu ordem de despejo. Deram-lhe 30 dias para sair, mesmo sem nunca ter atrasado o aluguel que pagava à prefeitura. Teve grita, advogado, sem sucesso. Restou migrar para uma loja geminada na Saldanha Marinho , onde gozava da companhia das moscas. Depois, para uma portinha da Travessa Nestor de Castro, ponto excelente para o livre comércio de crack, mas péssimo mercado para a francesa Photo, um dos muitos títulos nos quais Melo se fez recordista de vendas. "Entreguei os pontos", conta.

Logo ali

Curitiba conta com 188 banquinhas e revistas e jornais – várias delas verdadeiros pontos de cultura. É o caso da "Banca Bom Jesus", no Juvevê, ou a "Banca do Bem", no Hugo Lange, para citar duas. A "Banca do Melo", mesmo sem ser a mais antiga ou a mais rentável, gozava de respeito entre seus pares. Reunia três qualidades essenciais no ramo: boa localização – bastava seguir a pé pela Tiradentes ou pelo Largo da Ordem e exercitar as panturrilhas por não mais de 20 degraus; bons títulos – dava mais espaço a impressos do que às jujubas e aos cigarros; e um proprietário carismático, que além de bom de papo estava sempre disposto a cruzar a cidade para conseguir aquele exemplar pedido pelo freguês.

Com todos esses requisitos, não demorou para que visse a nata intelectual passar pelo minifúndio de 30 metros quadrados e deixar o nome no fichário, no qual anotava os fiados. Dar licença para Jaime Lerner passar pela porta não lhe causava espanto. Virou rotina correr atrás do arquiteto Key Imaguire – que sempre esquecia alguma sacola por lá. Aprendeu cinema com Valêncio Xavier, teatro com Paulo Friebe. Viu Vidal Costa passar de guri a historiador. "Não foram 35 dias", alerta.

Publicidade

Tem mais. Qualquer estudo que se preze sobre a resistência à ditadura no Paraná vai ter de passar pela... "Banca do Melo", cujo nome de pia é "Banca do Nanicão". Soa engraçado, mas diz tudo: é um disfarce. O local foi aberto em 1977, quando a Galeria Júlio Moreira ainda engatinhava. Estava ali para atrair público – daí ter como vizinho o Teatro Universitário de Curitiba, o TUC, um dos berços do rock local e palco de A Chave, para dizer o mínimo; e a loja de discos Música Viva, de um vivente apelidado de "Vermelho". Em 1979, quando Melo compra a banca "por 200 mil cruzeiros", escuta o apelo da turma que frequentava aqueles baixios, tinha de dar espaço para a imprensa nanica, como eram chamados os jornais que irritavam os generais.

Comunista?

"Nunca fui de esquerda, mas nunca fui de direita. Acatei", resume o comerciante, hoje com 76 anos. Estava acima de qualquer suspeita. Melo vendia poucos jornalões – não mais de 50 exemplares por dia. Já do marco da esquerda festiva, O Pasquim, desovava 500 numa semana, para desespero dos agentes da Polícia Federal, que davam batidas por lá. Quando apareciam, carregavam também Tribuna da Luta Operária, Movimento e Opinião, entre outros. Pouco adiantava. "Até com o Rafael Greca eu briguei por causa disso. Ele reclamou que eu não vendia o jornal católico Voz do Paraná", lembra, sobre o semanário que tinha lá seus flertes com o perigo e empregou jornalistas cassados, como Teresa Urban e Milton Heller.

Mesmo sem seu dono ser um agente antiditadura, a banca refletiu as tensões políticas da época. À semelhança de outros jornaleiros, Melo recebeu cartas com ameaça de bomba, três no total, enviadas pelo CCC – Comando de Caça aos Comunistas. Não sofreu ataques de fato, a exemplo do ocorrido em São Paulo ou Rio de Janeiro, mas foi o bastante para que ganhasse a aura de herói da resistência. Recebeu mensagens de apoio de políticos como José Richa. "Não mereci a mesma atenção do filho dele, que me despejou", ironiza. Do líder João Amazonas recebeu o convite para um jantar do Partidão. "Mas não sou comunista seu João. Eu vendo porque banca de jornal existe para isso", resumiu-se a dizer.

De tudo, sobrou uma lembrança divertida. Com a abertura política. A "Nanicão" da Galeria Júlio Moreira abrigou um simulado da eleição presidencial de 1989 – a primeira depois dos "anos do chumbo". Entre os frequentadores da banquinha, simpatizantes e distraídos que passavam ali na hora não deu nem Lula, nem Collor, nem Guilherme Afif – a quem os paranaenses, então, tanto se afeiçoaram. Deu Mário Covas. Dias depois, deu José Avelar de Melo. Na entrega do Prêmio Gibiteca – que reunia os amantes do HQ da cidade, um troféu especial goes to o dono da banquinha. Naquela noite, "alegria, alegria", o jornaleiro ganhou mais do que feira do dia.

Publicidade