Este estudo é a primeira análise jurídica feita no Brasil sobre o livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Em setembro de 2009, foi apresentado, em forma de palestra, em evento organizado pela Universidade Federal da Grande Dourados e pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul.
Tudo começa quando um motorista parado no semáforo perde a visão e se percebe acometido pela cegueira branca que, logo após, espalha-se pela cidade. Os cegos são colocados em quarentena num local inapropriado e insalubre, por um governo improvidente cujos membros, pouco mais tarde, tornam-se também cegos.
Acerca da quarentena acima narrada, juridicamente falando, Constituições até permitem que, em casos extremos de iminente ameaça externa (Estado de Defesa) e em casos de grave desordem interna provocada por exemplo por uma guerrilha (Estado de Sítio), pessoas possam ser privadas de algumas liberdades. Entretanto, na hipótese narrada por Saramago, houve, por parte do governo, o abuso de uma quarentena imposta sem a contraprestação (a oferta) do apoio logístico, enfermeirial e médico que se impunham, fator este que tornou o confinamento inconstitucional.
Em análise filosófica do Direito, na quarentena e na situação de perda de visão por si só , os cegos são reduzidos à essência humana, trazendo à tona as máximas de Thomas Hobbes segundo as quais "O homem é o lobo do homem" e "Os homens vivem numa guerra de todos contra todos".
Saramago nos lembra da "Responsabilidade de ter olhos enquanto os outros os perderam". Nesse sentido, existe a figura da Mulher do Médico, a única pessoa capaz de enxergar, cujo papel na busca da dignidade de si própria e de todos os demais cegos confinados é fundamental. Daí a razão de se ter olhos enquanto os outros os perderam "(...) em terra de cegos, quem tem olho é rei". No caos da cegueira, o "obscurecimento branco" dos valores é inversamente proporcional à iluminação virtuosa advinda das qualidades de alguns poucos, caso da Mulher do Médico, única luze no insuperável fim de túnel da cegueira da indignidade.
Algo a ser elucidado em Ensaio Sobre a Cegueira: qual é a diferença entre a cegueira comum a preta, aquela que deixa a visão do cego normal obscurecida em negritude visual e a treva branca (leitosa) de Saramago? A resposta é: a cegueira negra (comum) é só física. Já a treva branca é muito pior e corresponde à inversão dos conceitos (constitucionais) de dignidade, liberdade, igualdade, fraternidade e solidariedade; trata-se o caos da treva branca da perda do respeito às minorias e às maiorias historicamente desfavorecidas. Em suma, a cegueira branca de José Saramago é o caos do menosprezo aos Direitos Humanos Fundamentais.
Ícones da cultura ocidental se tornam inúteis e, portanto, são violados no mundo dos cegos brancos. Alguns deles são: i) identidade (nomes) no livro, os personagens não têm nome e são tratados como a Mulher do Médico, a Rapariga de Óculos Escuros, o Velho de Venda Preta nos Olhos, o Primeiro Cego, a Mulher do Primeiro Cego, o Ladrão (o interessante é que isso corresponde ao que tem ocorrido no mundo sem alma, contemporâneo e pós-moderno, em que pessoas humanas são chamadas de "Elementos" pela polícia, ou idealizam vidas paralelas e criam personagens de si próprias em sites de relacionamentos, deixando de lado suas personalidades); ii) perda da noção de propriedade privada de quê importa ter relógios ou carros se não podemos deles nos utilizar entre cegos perdidos?; iii) incolumidade física, vida e liberdade no livro, nenhum desses três direitos fundamentais é preservado em confinamento improvidente; iv) perda da noção de tempo e vilipêndio ao protestantismo de Max Weber que nos ensinou o valor do trabalho, e do tempo no trabalho; v) incentivo à vingança à medida que a Mulher do Médico, em nome dos cegos oprimidos da Ala 1, vinga-se, matando com uma tesourada o líder do motim da Ala vizinha.
Contudo, a maior denúncia de Saramago nesta obra é a perda da esperança e da fé. Para isso, ele se utiliza da mitologia católica quando a Mulher do Médico entra numa igreja e se depara com a figura de Jesus Cristo com uma venda tapando-lhe os olhos. Em termos religiosos, a denúncia de Saramago é clara. Porém, ela pode ser trazida ao mundo de um Direito em que, por exemplo, os advogados constitucionalistas de ontem que deveriam abraçar verdadeiramente a estruturação de um Estado justo e as causas sociais recusam-se a sair de seus gabinetes, e em que os representantes dos três poderes rejeitam o povo e as responsabilidades para as quais foram designados. Como escreve Saramago: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara".
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*Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa.
**A palestra pode ser assistida pela internet, no site YouTube (www.youtube.com), buscando-se o tema "A cegueira em Saramago e o Direito".
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