Nos cinco anos em que trabalhou na Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, Suíça, o alemão Helmut Schwarzer se acostumou a ouvir perguntas sobre o Brasil – em especial a respeito do tal Bolsa Família. O programa de repasse de renda e redução da pobreza – implantado em 2003 – despertava a curiosidade de gestores dos quatro cantos do mundo. Helmut era a pessoa certa para esclarecê-los. Conhecia o projeto por força do ofício, mas também por afeto.
As ligações do pesquisador com o Brasil vêm da infância. Em 1976, o pai de Helmut – engenheiro de uma multinacional alemã – foi transferido para Curitiba e trouxe toda a família. Os Schwarzer se integraram à vida da cidade, morando em bairros como Vista Alegre, Cristo Rei e São Braz. Usavam transporte público e matricularam os filhos no que lhes disseram ser um dos melhores colégios da cidade – o “Nossa Senhora Medianeira”. Helmut não se lembra ao certo, mas é provável que ao frequentar a escola jesuíta tenha descoberto a pobreza do Brasil, tema que o perseguiria dali para frente. Do lado da instituição havia (e há) uma favela – a Vila das Torres, zona então irregular, com 6,5 mil moradores. Bastava dar uma olhada pela janela da sala de aula. O fato é que mesmo depois de adulto, formado em Economia pela UFPR e de volta à Europa, seguiu interessado pelo país que tem dificuldades crônicas em dividir sua riqueza.
“A pobreza é um tema que o Brasil não quis enfrentar ou não o fez de forma substantiva. Eu diria que políticas como a de valorização do salário mínimo foram uma ferramenta importante.”
A questão virou uma causa secreta, fonte de estudos e passaporte natural para que assumisse, no início deste ano, o posto de secretário nacional de Renda de Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). O cargo não lhe dá sossego. Continua atendendo dezenas de comitivas internacionais, interessadas na logística espetacular do Bolsa Família – implantado em 5,5 mil municípios. Contido, técnico e avesso a bravatas, Helmut põe tabelas e planilhas à mesa. Permanece, em certo sentido, um rigoroso consultor de seguridade social da OIT. Não lega detalhes inclusive aos opositores. “O programa custa 0,5% do PIB e atende 25% da população brasileira”, avisa, para começo de conversa.
No final de agosto, Helmut Schwarzer veio a Curitiba para conhecer o trabalho da Fundação de Ação Social. Aproveitou para rever a cidade onde morou 17 anos. Que tipo de “curitibano” era? Foi da geração que descobriu a literatura nas míticas aulas do professor Paulo Venturelli, no Medianeira; e da turma que praticou escotismo sob a liderança do advogado Paulo Salamuni, hoje vereador. “Que maldade me perguntar em que bares eu ia”, disse, num momento de descontração durante entrevista exclusiva à Gazeta do Povo.
Dentre as críticas feitas ao Bolsa Família, qual o senhor considera mais injusta?
Chamar o programa de eleitoreiro, dizer que utiliza mecanismos de políticas de governo, quando na verdade pratica políticas de saúde e educação. O Bolsa Família pratica um conceito de direito – o direito de sair da condição de pobreza.
Os opositores do Bolsa Família continuam repetindo que o programa erra ao “dar o peixe em vez de ensinar a pescar”. O que o senhor diria a qum faz essa afirmação?
Que desconhece que 75% dos adultos das famílias do Bolsa Família estão no mercado de trabalho, uma taxa semelhante à dos não beneficiários (veja os dados completos no gráfico). O pessoal do Bolsa Família trabalha tanto quanto os outros. É uma renda complementar a outras fontes, de modo a criar uma oportunidade para vencer a pobreza. É importante que as pessoas passem a ver o Bolsa Família não como assistencialista, mas como um programa de assistência social que amadurece suas estratégias de combate à miséria.
O brasileiro médio desconhece os mecanismos da pobreza?
A pobreza é um tema que o Brasil não quis enfrentar ou não o fez de forma substantiva. Eu diria que políticas como a de valorização do salário mínimo foram uma ferramenta importante. Diminuíram a possibilidade de que, apesar de trabalharem, milhares de pessoas caíssem na pobreza. O salário mínimo é um instrumento importante para que o mercado de trabalho funcione. E o mercado que não gera renda suficiente para os trabalhadores tem, é óbvio, uma falha.
O Bolsa Família é caro como se quer acreditar?
Temos dois dados importantes – o programa custará R$ 27 bilhões este ano. O que a princípio parece ser muito equivale a 0,5% do PIB – e 0,5% do PIB protege 25% da população brasileira. Temos 13,8 milhões de famílias na folha de pagamento – o que [multiplicado pelo número de membros da família] equivale a 48 milhões de pessoas. Repito – é uma quarta parte da população brasileira sendo abastecida com 0,5% do PIB. E se somarmos todo o custo de remuneração dos agentes do Bolsa nos estados, municípios e no governo federal, gastamos 5% da nossa folha de pagamento. É muito pouco. Nos outros países, esse custo chega a 15%, como pude conferir no tempo em que fiz assessoria técnica para a OIT [Organização Internacional do Trabalho].
O programa está blindado contra a corrupção?
Fazemos um grande esforço para isso. Desde 2006, o programa revisa cadastros. Convocamos centenas de famílias que precisam validar suas informações; ou verificamos se está tudo em ordem fazendo o cruzamento de informações com outras bases do governo. Ajuda a perceber se há divergência entre nossos dados e a folha de pagamento de Previdência Social, por exemplo. Essa faceta de controle é pouco conhecida – funciona como a malha fina do Imposto de Renda. Tal recurso faz com que nosso cadastro seja apurado, mantendo o foco na população necessitada. Três milhões de família deixaram o programa desde o início.
O sociólogo Alberto Carlos Almeida, da pesquisa A cabeça do brasileiro, disse que o Bolsa Família é uma espécie de aposentadoria para uma parcela de cidadãos a quem o país não assistiu e que agora têm pouca ou nenhuma condição de se sustentar. O senhor concorda?
Concordo que o Bolsa Família é importante para saldar a dívida social brasileira. Não concordo com a segunda parte da afirmação, a de que os beneficiários são pessoas que não conseguiriam sair da situação de pobreza. Dentre os beneficiários do 2011-2014, mais de 1 milhão fizeram cursos do Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego]. Cerca de 55% dos estudantes que eram beneficiários do Bolsa conseguiram emprego após concluir esse curso. Meio milhão de beneficiários se formalizaram como empreendedores individuais. Temos outro exemplo: 3,1 milhões de famílias que participaram de algum momento do Bolsa Família deixaram o programa porque conseguiram superar a linha de renda de R$ 154 por pessoa. Temos 100-150 mil pessoas em fluxo contínuo no Bolsa. Os atuais 3,8 milhões de família do Bolsa Família não estão lá desde o começo do programa. Pessoas saíram, outras entraram.
No início, o Bolsa Família foi acusado de não ter previsto a contrapartida escolar, o que o tornaria mero repasse de verba. Mais recentemente, frei Betto lamentou a ausência de mecanismos de ação social junto aos beneficiados, sugerindo que o projeto ganhou caráter de assistência. Onde está a verdade?
Um programa de proteção social nunca nasce pronto e acabado. Antes do Bolsa Família, trabalhei com o sistema previdenciário brasileiro, que é de 1923 e foi evoluindo. O Bolsa Família é do final de 2003. Em 12 anos, superou barreiras. Trabalhou para que as crianças e jovens beneficiários tivessem melhores oportunidades. Mostrou que a pobreza não deriva só da falta de renda, mas também da falta de acesso a um conjunto de oportunidades sociais. Virou um nicho capaz de políticas de inclusão social. Tem concepção é inteligente e mostrou desde o início que ideia de transferência de renda é necessária para combater a pobreza extrema...
Um dos méritos do Bolsa Família é a permanência das crianças na escola. Como o programa poderia progredir para garantir a volta dos adultos ao sistema educativo. Sem essa progressão, tudo indica que os adultos ficarão no círculo da pobreza...
Fazer da volta à escola uma condição para que adultos recebam o Bolsa Família? Acho que não. Temos de levar em conta que o programa permite acesso a 30 programas federais diferentes, inclusive a escola. Os governos municipais e estaduais poderiam ajudar a criar políticas de acesso à educação de adultos. No futuro, concordo, teremos de nos deter nessa questão. Ainda assim, digo que temos 500 mil participantes do Bolsa Família matriculados na EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Não tenho uma pesquisa que permita afirmar que o programa incentiva os adultos a voltarem à escola, mas que essa é uma preocupação, é.
O que mais chama atenção das comitivas internacionais que vêm ao Brasil para conhecer o programa?
O cadastro único. Os estrangeiros querem saber como funciona e como fazemos para conseguir uma base de dados fidedigna, que permita dirigir recursos para os mais pobres, sem perdas pelo caminho. Em segundo lugar, têm curiosidade pela logística. O Bolsa Família funciona num país continental, articulando os estados e os 5,5 mil municípios que assinaram os termos de adesão ao programa.
A comunidade internacional entende que as políticas de desenvolvimento econômico são insuficientes e que boas políticas sociais podem ajudar a reverter o quadro de concentração de renda. O Brasil desponta porque conseguiu deter esse processo e acabou se tornando referência. O Bolsa Família virou uma inspiração.
Quem copia o Brasil?
Brasil e México são países pioneiros em transferência de renda nas Américas. No México, chamava-se Prospera. Nos demais países do continente e Caribe foram introduzidos programas com os mesmos conceitos. O Bolsa tem como primeiro objetivo o combate à pobreza extrema. No México, o programa serve de apoio à educação. O programa chileno surgiu no início dos anos 90, era um programa de reação a uma crise, previa um período máximo de participação, mas não teve sequência. A Índia desenvolve um programa de proteção social, o Mahatma Gandhi. É para a área rural e transfere renda para adultos, desempregados e pobres que querem trabalham em processo de desenvolvimento do campo. Ainda assim, o Bolsa Família é o maior no mundo.