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Infância e adolescência

O grande rap dos oficineiros

McCarthy: autor de "A Estrada" vendeu a máquina de escrever que comprou em 1963 por 50 dólares. | Divulgação
McCarthy: autor de "A Estrada" vendeu a máquina de escrever que comprou em 1963 por 50 dólares. (Foto: Divulgação)

A semana que passou foi de aplausos – muitos aplausos – em três dos 18 centros de socioeducação para adolescentes em conflito com a lei (Censes) mantidos pelo governo do estado. Nas unidades Educandário São Francisco, em Piraquara; Joana Miguel Richa, em Curitiba; e Fazenda Rio Grande, cerca de 80 garotos e garotas privados de liberdade mostraram para a imprensa e convidados o resultado da última edição da oficina de jornal e audiovisual Luz, Câmera... Paz!, ministrada nos últimos quatro meses por jornalistas e educadores da Ciranda – Central de Notícias dos Direitos da Infância e da Adolescência.

O Luz, Câmera... Paz! funcionou como uma tribuna para que os internos dissessem como se sentem e com o que sonham. Tudo isso sem precisar queimar colchões, afiar estoques ou fazer reféns. Os rapazes e moças ganharam rosto, nome e deram seu recado enquanto apresentavam os vídeos e o jornal, cantavam raps ou faziam sessões de break e de street-dance.

Ter dado a palavra e a imagem à rapaziada é, com folga, o grande trunfo da oficina Luz, Câmara... Paz!. Apesar de ser uma bandeira do ECA condenar o trabalho infantil ou o abandono familiar, é incomum saber da boca dos próprios adolescentes privados de liberdade o que pensam a respeito desses e de outros assuntos. "Nossa intenção é mostrar que motivos trouxeram esse pessoal até aqui. Eles precisam de expressão. E quando falam – falam da violência que sofreram, lembram ao que foram submetidos. Nosso esforço foi fazer com que essa conversa gerasse uma cultura da paz", explica o jornalista Téo Travagin, 24 anos, idealizador do projeto em parceria com a educadora Lizely Borges.

Os oficineiros não jogaram a chance pela janela. Cantando ou fazendo as vezes de mestres-de-cerimônia, falaram pelos cotovelos de temas da hora, como a violência contra a infância, abuso sexual e redução da maioridade penal. São grandes debates nos quais, por ironia, viraram apenas figurantes.

Em momentos de maior licença poética, abordaram temas à flor da pele, como a discriminação racial e a imagem pouco cordata que parcelas da sociedade fazem dos adolescentes em conflito com a lei. "Nosso dilema é decidir se vamos tomar um gole a mais, se vamos pegar uma arma. É perceber que não temos nenhum estudo", disse um deles – numa peça de teatro improvisada, para uma audiência boquiaberta.

Mas nada teve mais força nas oficinas de 2007 do que os raps de autoria dos próprios internos – cantados mais de uma vez em cada uma das três unidades durante os encontros na semana passada. As músicas chegaram a estimular coros animados na hora de entoar refrões como "corta o coração ver a infância perdida num sinaleiro"; "não somos os monstros que acham que a gente é" – entre outros manifestos embalados pela mais legítima cultura hip-hop. Foi emoção em estado bruto. "Nós queremos mostrar que não somos o que pensam. Não somos bandidos. Poder dizer isso para vocês é uma vitória", diz G., 18 anos, dez meses de Educandário São Francisco.

Os três vídeos-piloto produzidos pela garotada deixaram uma certeza. Ao se ver diante das câmeras, ou gravando os colegas, fica mais fácil se projetar e, por extensão, projetar os próprios problemas. Não é de hoje, inclusive, que se elogia o poder do audiovisual na remissão de meninos e meninas que vivem nos centros socioeducativos. Sem falar na capacidade que o jogo de imagens tem de apontar soluções. Diante da máquina de filmar, é preciso se colocar. E o que mais se ouve falar nessas horas é em recomeço.

Como ninguém é de ferro, não faltam alguns quitutes de bom humor. "Desde que cheguei aqui [na unidade] estou gorda e estou linda", brinca uma das internas no filme, rompendo o clima tenso da maioria das falas.

Para a pesquisadora da UFPR Araci Asineli da Luz – referência em políticas públicas voltadas para a infância e adolescência marginalizada – o projeto tem a grande qualidade de mostrar que se a palavra for dada a esses jovens, eles mesmos vão apontar a solução. "Não podemos reproduzir a idéia de que eles são apenas um problemas. São também uma saída", comenta Araci.

Há uma década, Araci Asineli da Luz e uma equipe da universidade participam do corpo de educadores da Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros, que abriga em Mandirituba cerca de 80 crianças e adolescentes em situação de risco social. São vítimas de abandono familiar e ex-moradores de rua, em sua maioria. O projeto é considerado modelo pela Unicef. Nos três dias de lançamentos de vídeo nas unidades, quatro garotos da chácara puseram a roupa de domingo, máquina fotográfica a tiracolo e assumiram seu lugar no público que lotou as salas do Educandário São Francisco, do Joana Richa e do Cense Fazenda Rio Grande.

Foram convidados "desses que dão gosto." Deles partiam muitos dos aplausos que colocaram a perigo a sisudez de presídio que ainda vigora nas unidades. Para os internos, a turma da chácara – em plena liberdade depois de uma nada mole vida – são a prova de que cada rap, cada vídeo e cada discurso funcionam como passaporte para o futuro – palavrinha mágica do projeto Luz, Câmara... Paz!

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