A semana que passou foi de aplausos muitos aplausos em três dos 18 centros de socioeducação para adolescentes em conflito com a lei (Censes) mantidos pelo governo do estado. Nas unidades Educandário São Francisco, em Piraquara; Joana Miguel Richa, em Curitiba; e Fazenda Rio Grande, cerca de 80 garotos e garotas privados de liberdade mostraram para a imprensa e convidados o resultado da última edição da oficina de jornal e audiovisual Luz, Câmera... Paz!, ministrada nos últimos quatro meses por jornalistas e educadores da Ciranda Central de Notícias dos Direitos da Infância e da Adolescência.
O Luz, Câmera... Paz! funcionou como uma tribuna para que os internos dissessem como se sentem e com o que sonham. Tudo isso sem precisar queimar colchões, afiar estoques ou fazer reféns. Os rapazes e moças ganharam rosto, nome e deram seu recado enquanto apresentavam os vídeos e o jornal, cantavam raps ou faziam sessões de break e de street-dance.
Ter dado a palavra e a imagem à rapaziada é, com folga, o grande trunfo da oficina Luz, Câmara... Paz!. Apesar de ser uma bandeira do ECA condenar o trabalho infantil ou o abandono familiar, é incomum saber da boca dos próprios adolescentes privados de liberdade o que pensam a respeito desses e de outros assuntos. "Nossa intenção é mostrar que motivos trouxeram esse pessoal até aqui. Eles precisam de expressão. E quando falam falam da violência que sofreram, lembram ao que foram submetidos. Nosso esforço foi fazer com que essa conversa gerasse uma cultura da paz", explica o jornalista Téo Travagin, 24 anos, idealizador do projeto em parceria com a educadora Lizely Borges.
Os oficineiros não jogaram a chance pela janela. Cantando ou fazendo as vezes de mestres-de-cerimônia, falaram pelos cotovelos de temas da hora, como a violência contra a infância, abuso sexual e redução da maioridade penal. São grandes debates nos quais, por ironia, viraram apenas figurantes.
Em momentos de maior licença poética, abordaram temas à flor da pele, como a discriminação racial e a imagem pouco cordata que parcelas da sociedade fazem dos adolescentes em conflito com a lei. "Nosso dilema é decidir se vamos tomar um gole a mais, se vamos pegar uma arma. É perceber que não temos nenhum estudo", disse um deles numa peça de teatro improvisada, para uma audiência boquiaberta.
Mas nada teve mais força nas oficinas de 2007 do que os raps de autoria dos próprios internos cantados mais de uma vez em cada uma das três unidades durante os encontros na semana passada. As músicas chegaram a estimular coros animados na hora de entoar refrões como "corta o coração ver a infância perdida num sinaleiro"; "não somos os monstros que acham que a gente é" entre outros manifestos embalados pela mais legítima cultura hip-hop. Foi emoção em estado bruto. "Nós queremos mostrar que não somos o que pensam. Não somos bandidos. Poder dizer isso para vocês é uma vitória", diz G., 18 anos, dez meses de Educandário São Francisco.
Os três vídeos-piloto produzidos pela garotada deixaram uma certeza. Ao se ver diante das câmeras, ou gravando os colegas, fica mais fácil se projetar e, por extensão, projetar os próprios problemas. Não é de hoje, inclusive, que se elogia o poder do audiovisual na remissão de meninos e meninas que vivem nos centros socioeducativos. Sem falar na capacidade que o jogo de imagens tem de apontar soluções. Diante da máquina de filmar, é preciso se colocar. E o que mais se ouve falar nessas horas é em recomeço.
Como ninguém é de ferro, não faltam alguns quitutes de bom humor. "Desde que cheguei aqui [na unidade] estou gorda e estou linda", brinca uma das internas no filme, rompendo o clima tenso da maioria das falas.
Para a pesquisadora da UFPR Araci Asineli da Luz referência em políticas públicas voltadas para a infância e adolescência marginalizada o projeto tem a grande qualidade de mostrar que se a palavra for dada a esses jovens, eles mesmos vão apontar a solução. "Não podemos reproduzir a idéia de que eles são apenas um problemas. São também uma saída", comenta Araci.
Há uma década, Araci Asineli da Luz e uma equipe da universidade participam do corpo de educadores da Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros, que abriga em Mandirituba cerca de 80 crianças e adolescentes em situação de risco social. São vítimas de abandono familiar e ex-moradores de rua, em sua maioria. O projeto é considerado modelo pela Unicef. Nos três dias de lançamentos de vídeo nas unidades, quatro garotos da chácara puseram a roupa de domingo, máquina fotográfica a tiracolo e assumiram seu lugar no público que lotou as salas do Educandário São Francisco, do Joana Richa e do Cense Fazenda Rio Grande.
Foram convidados "desses que dão gosto." Deles partiam muitos dos aplausos que colocaram a perigo a sisudez de presídio que ainda vigora nas unidades. Para os internos, a turma da chácara em plena liberdade depois de uma nada mole vida são a prova de que cada rap, cada vídeo e cada discurso funcionam como passaporte para o futuro palavrinha mágica do projeto Luz, Câmara... Paz!