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história

O inventário das sobras

Desde os tempos de menina, a gaúcha Vera Lúcia Didonet Thomas sente uma atração fatal por sótãos. Não pode ver um – faz olhos de súplica ao dono da casa e segue ligeira escadinha acima. O gosto já lhe rendeu até uma atividade profissional. Quando ainda morava no Rio Grande do Sul, chegou a trabalhar com museologia. Mas foi ao se mudar para Curitiba, nos anos 80, que os sótãos e todo o resto passaram a fazer parte do seu dia-a-dia. Numa espécie de conspiração do inconsciente, os caminhos de Didonet se cruzaram com o da veterana Gerda Metzenthin, moradora de uma daquelas incríveis residências de madeira que só no Paraná parecem existir. Ficava na Rua General Francisco de Lima e Silva, 65, no Centro Cívico, e tinha sido endereço do escultor Erbo Stenzel, autor do conjunto batizado de "Homem Nu", na Praça 19 de Dezembro.

Como Erbo tinha morrido havia seis anos, seus pertences estavam no piso superior, encaixotados pela prima Gerda. Foi o bastante para que Didonet lamentasse não poder saber como o morador dispunha os objetos pelos cômodos, o que certamente revelaria muito sobre ele. A frustração acabou conduzindo a visitante a uma empreitada que merece uma saraivada de adjetivos: de surpreendente a inédita. Didonet se tornou uma espécie de "tombadora" da vida doméstica, ocupação da qual não se tem notícia nos cadernos de emprego.

O inventário poético é lento – uma única casa já lhe consumiu 12 anos de "coleta de fungos" – e exige nervos de aço. "Paciência", diz ela, sobre a rotina de fichas, fotos, conversas com herdeiros e observação contínua, já que é nas sobras que pode estar uma revelação. Tanto que batizou seu projeto de "Teatro Monótono", grande sacada para definir o movimento quase imperceptível que uma panela faz do fogão para o armário, até virar regador de plantas e, claro, ser estimada justamente por ser lata velha. Vá saber!

Em 20 anos de tombamentos, Didonet somou no currículo três casas e tem uma em andamento, a Casa da Estrela, no Alto da Glória. Todas geraram pesquisas universitárias, incluindo uma dissertação de mestrado pela ECA-USP, com defesa até o fim do ano. Mas não há honra acadêmica que faça jus ao encanto provocado pelas expedições que fazem dessa mulher de Caxias do Sul um Indiana Jones dos quintais, escadarias e – elementar – sótãos.

Uma de suas empreitadas mais espetaculares foi ao incrível mundo de Romollo de Castro Deus, morador da Rua Roberto Barroso, 345. O dono já foi dessa para melhor e a casa de madeira virou lenha. Menos para Didonet. Ela ouviu falar do local no salão de beleza e de 1998 a 2005 registrou o desmancho. Que não era um qualquer. Romollo pregava móveis à parede, alterava-lhes a finalidade e a cor – pintando tudo de vermelho ou verde. Também fazia miniaturas do local, um hábito tão enigmático quanto poético. No fundo, todo mundo é meio Romollo, com 80% a menos de criatividade e sem uma caixa de pregos à mão.

Semana passada, a reportagem acompanhou Didonet Thomas num dos endereços em que atua, a residência que um dia pertenceu a Nestor Stenzel e a Lydia Petersen, na Rua Trajano Reis, 571, no Alto São Francisco. Deu até para brincar de arqueólogo. A que se referia o bilhete amarelado na escada da oficina, escrito ... "meia colherzinha de formalina a 40%"? A moradia – um colonial português de madeira e alvenaria – é de 1933 e hoje abriga uma floricultura. Élia Brindarolli e Sirley de Macedo são floristas ali e não precisaram de muita saliva para entender a missão de Didonet. "Ela faz aqui dentro o que um fotógrafo faria na cidade. E de casa, mulher entende", arrisca Sirley.

Quando Didonet entrou ali pela primeira vez, em 1992, o proprietário estava idoso. Mas não resistiu ao projeto, o que era de se esperar de um sujeito que ainda via telhas francesas na janela. Irmão de Erbo, Nestor, morto em 2004, foi marceneiro e fotógrafo nas horas vagas. A casa da Trajano virou uma extensão de seu ofício. Bolava de porta-retratos a estantes art nouveau e – o melhor da história – forjava esconderijos por trás dos mata-juntas, rabos-de-andorinha, papos-de-imbuia e forros paulistinhas. "Ele era cheio de truques", resume a tombadora.

Em certa ocasião, Didonet arrastou um armário e encontrou um depósito de tralhas dessas guardadas "para quando estourar uma guerra": papéis de presente, berços, roupas fora de uso. Também havia muita carte-cabinet, aqueles cartões de visita com retratos da família. Uma delicadeza dos Petersen-Stenzel. A seu dispor.

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