• Carregando...

Há inacreditáveis 28 anos, Alice Linke, 78, faz tudo sempre igual. De segunda a sexta-feira, à tarde, depois de servir almoço para Adolar, com quem está casada há 52 anos, ela deixa o fogão e a pia da cozinha brilhando, cata duas ou três sacolas cheias de mantimentos e vai para o ponto do ônibus, na Vila Fanny, onde mora. Quem a vê, religiosamente no mesmo horário e local, nem imagina: seu destino diário é alguma das muitas favelas de Curitiba e região.

Essa história começou em 1977. Ao participar de uma assembléia da Igreja Católica, a dona de casa ouviu dom Albano Cavalin perguntar se alguém gostaria de participar da recém-criada Pastoral das Favelas. Foi o dia em que Alice levantou a mão, sendo a única leiga, então, a se oferecer para o serviço e a única pioneira a permanecer no posto até hoje. "Vem bispo e vai bispo e eu continuo." Não saiu ilesa da experiência. Ex-Filha de Maria, na Paróquia de Santa Terezinha, no Batel, filha de um fazendeiro, dona de casa dedicada ao marido, três filhos e sete netos, ela descobriu na maturidade que não vivia no país das maravilhas.

As primeiras noites foram de insônia e lágrimas no travesseiro. Não se conformava. Alguns episódios, inclusive, ainda lhe causam a comoção da primeira vez, como o da mãe do bairro Santa Amélia que mandou um grupo de crianças para a cama às quatro da tarde, para que esquecessem da fome. De outra feita, no Santa Quitéria, comeu numa latinha de cera uma porção de comida retirada do lixo – oferecida por uma das famílias que visitava. "Não sou melhor do que eles. Aceitei", repete. Nunca tinha visto a pobreza tão de perto.

Tão de perto que Alice não se presta apenas ao papel da mulher de bom coração que reserva parte de seu dia para fazer caridade aos necessitados. Hoje, ela é uma espécie de testemunha privilegiada dos estragos causados pela miséria – assunto que expõe ora com a propriedade de uma especialista, ora com a paixão de uma militante. "Eu me revolto com a omissão dos políticos. Quando eles aparecem nas propagandas tenho vontade de jogar uma pedra na televisão." De quebra, esbraveja contra o fracasso do Fome Zero.

Segundo Alice Linke, são 310 favelas em Curitiba e região, muitas das quais descreve como se fossem a sala de sua casa, sejam invasões ou fileiras de barracos em beira de rio. Seu testemunho oral passa pelos primeiros casebres que visitou – Vila Urano, Parolin, Jardim Esmeralda –; pela Vila Verde, que lhe custa quatro conduções; ou a área que hoje considera a mais problemática, a Vila Zumbi dos Palmares. "Sou velhinha", desculpa-se, quando os detalhes lhe escapam.

Mas que nada. Serviço de utilidade pública: não chamem pobre de vagabundo perto dela. Nem demonstrem qualquer forma de asco com a casa em que vivem. Muito menos inventem de fazer turismo na favela. A doce vovó das sacolas, batom nos lábios e vestido florido sabe como botar o bloco na rua. Alice, afinal, vai à guerra de segunda a sexta-feira.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]