O comportamento do Congresso, a atuação do Judiciário e o desempenho do Executivo ainda concentram boa parte da discussão política em sua esfera formal. Por outro lado, torna-se cada vez mais evidente o enfraquecimento dos limites tradicionais deste tipo de discussão ao mesmo tempo em que a sociedade encontra caminhos alternativos para se revelar politicamente engajada. O ativismo conquista as ruas, as escolas, os coletivos e também a mesa.
Você não leu errado. O consumo e a produção de alimentos integram um amplo sistema de escolhas capaz de definir as orientações de uma pessoa ou de um grupo. Um dos maiores encorajadores do “comer” como prática política, o autor e jornalista estadunidense Michael Pollan costuma descrever a gastronomia dentro de uma prática social e cultural construída em cima da “comida de verdade”. Para ele, a mesa é um espaço social, e os alimentos, “ferramentas de cidadania” com força o suficiente para fortalecer um sistema alimentar alternativo que possa bater de frente com as grandes empresas de alimentos processados. A briga não está no lucro, mas na essência da democratização do sistema, que contempla desde a produção até a preparação dos pratos dentro de casa.
“Quando a gente está falando em comer como ato político, estamos pensando em outras formas de fazer política”, explica Elaine de Azevedo, nutricionista e especialista em sociologia da alimentação. Professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a profissional defende o comprometimento político da alimentação uma vez que o assunto está diretamente ligado a dimensões essenciais da vida, como saúde e ambiente saudável, por exemplo.
“Temos que pensar a alimentação como ato político dentro de várias instâncias. Precisamos olhar para a agricultura familiar, com menos impacto para o meio ambiente, para as comunidades quilombolas, para os ribeirinhos. Se a gente não falar deles, não conseguimos ver o elemento político”, ressalta a nutricionista, que acredita num crescimento cada vez mais constante da nova tendência da relação com os alimentos. “Cada vez mais os impactos estão perto da gente. Quando aumenta a pobreza na porta da tua casa, você tem que agir”, completa.
A professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) Janine Collaço acrescenta que a escolha por transformar a alimentação em um movimento social engajado e consciente é uma forma de contestar certos padrões estabelecidos. A prática tem origem, sobretudo, a partir da fundação do slow food, tipo de movimento que alia a biodiversidade e o uso de produtos artesanais ao prazer da alimentação.
“[A prática] adquire visibilidade ao criticar um modo de comer que se acreditava ser padronizador, de baixa qualidade, representado sobretudo pelos fast-foods de origem norte-americana. É o momento em que se acentuam movimentos de resistência local, os vegetarianos e veganos chamam a atenção, bem como os freegans, estes bem mais recentes”, diz.
O que tem na mesa?
O nicho da alimentação politicamente correta valoriza produtos orgânicos e não descarta a reconsideração do consumo de carne vermelha. Mas não é um limitador de cardápio. Na prática, o movimento não busca determinar o que comer ou não comer, mas sim valorizar o ciclo de produção em cada uma de suas etapas.
“Posso ser vegano e comer só trigo branco refinado ou comprar produtos só de grandes corporações. Não é isso que o ato político da alimentação busca”, explica a professora da UFES. “Existe uma discussão maior. Tem que ser discutida a agroecologia, as formas de agricultura sustentável, até mesmo o transporte, para saber quanto tempo o alimento leva até chegar em nossa casa”, completa.
Para Janine Collaço, a definição do que levar para a mesa depende da maneira como os grupos relacionam a moral e a política. “Comer animais para uns é inadmissível, e para outros não consumir carne é pobreza. Há um discurso moral subjacente que tenta ser disciplinador. Eu diria que mais que consumir, boicotar certos alimentos pode evidenciar melhor o caráter político da alimentação”, ressalta.
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