Em uma eleição presidencial acirrada, os evangélicos podem fazer a diferença em favor de Jair Bolsonaro. A histórica simpatia desse público a Bolsonaro talvez explique porque Lula, candidato do PT, decidiu lançar uma carta aos evangélicos. O documento, divulgado na quarta-feira, traz um tom amigável e argumenta que, enquanto presidente, Lula nunca afrontou os evangélicos — e que por isso eles não devem temer um eventual novo governo do petista.
Na carta, Lula promete "fortalecer as famílias" para manter os jovens "longe das drogas" e diz que "o respeito à família sempre foi um valor central na minha vida, que se reflete no profundo amor que dedico à minha esposa, aos meus filhos e netos". O candidato também assegura que "o lar e a orientação dos pais são fundamentais na educação de seus filhos, cabendo à escola apoiá-los dialogando e respeitando os valores das famílias, sem a interferência do Estado."
Mas, para lideranças evangélicas ouvidas pela Gazeta do Povo, o efeito da carta será inócuo; diante da militância persistente do PT e das declarações do próprio Lula em temas como a ideologia de gênero e o aborto, um comunicado de última hora pouco pode fazer. Eles também apontam para a falta de compromissos concretos na carta, como o reconhecimento do homeschooling e a garantia da liberdade religiosa na esfera pública — para, por exemplo, professar publicamente a crença de que a família é formada a partir de um homem e uma mulher.
Na opinião do pastor Franklin Ferreira, a carta de Lula é "uma colcha de retalhos de jargões vazios, que só serve para ludibriar os ingênuos". Para Ferreira, a carta não é eficaz por causa do histórico do PT e da esquerda. "Entre os pastores pentecostais e protestantes que conheço a carta foi recebida com piadas, desprezo ou cinismo. Não há como apagar da memória dos evangélicos as perseguições movidas por socialistas no passado contra a igreja, como na Europa Central, e os ataques de radicais do PT e do PSOL à fé cristã em anos recentes", diz Ferreira, que é doutor em Teologia e diretor do Seminário Martin Bucer.
Ferreira diz ainda que o eleitorado evangélico desenvolveu uma capacidade maior de identificar quem são as forças políticas hostis aos seus valores – e que cartas divulgadas às vésperas das eleições não são suficientes para mudar votos. "Ao mesmo tempo em que a esquerda radicalizou suas pautas, os cristãos, católicos, protestantes e pentecostais despertaram para a importância de buscar um bom preparo para a guerra cultural e a preservação de marcos civilizatórios importantes", diz ele.
Thiago Vieira, presidente do Instituto Brasileiro do Direito e Religião (IBDR) e membro da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB Federal, diz que o efeito da carta será "zero, ou pior". "Acreditamos que a carta é incoerente em relação a várias falas proferidas pelo candidato do PT, e não reflete o pensamento do partido sobre os evangélicos", escreveu ele, em uma manifestação assinada também pelo vice-presidente do IBDR, Jean Regina. Os representantes do IBDR também afirmam que "as ações do candidato revelam um projeto para relegar a religião ao espaço privado e abre as portas da nação brasileira para permitir práticas que violam a dignidade da pessoa humana".
Pastor, professor e escritor, Yago Martins tampouco foi persuadido pela carta do petista: "O discurso do Lula nessa carta claramente é oriundo de uma bolha de evangélicos que provavelmente escreveram essa carta para ele, completamente ignorantes sobre os medos e anseios reais daqueles que evitam votar no Lula por medo do trato dele com pautas religiosas", opina.
Aborto e fechamento de igrejas
A carta de Lula também traz uma menção ao aborto: "Sou pessoalmente contra o aborto e lembro a todos e todas que este não é um tema a ser decidido pelo Presidente da República e sim pelo Congresso Nacional", ele diz no texto.
Yago Martins afirma que a redação da carta é dúbia porque a posição pessoal de Lula sobre o aborto não é de interesse público. "O discurso da carta sobre o aborto vai contra aquilo que o PT tem estabelecido há muito tempo. O Lula usa uma linguagem pessoal de ‘eu sou pessoalmente contra o aborto’, como se a gente estivesse preocupado com o sentimento privado do Lula sobre o aborto, quando a gente está preocupado é com a política pública de descriminalização do aborto", ele critica. Franklin Ferreira concorda: "Não há, de fato, nenhum compromisso na carta com a proteção da vida do nascituro. A carta poderia afirmar que se eventualmente Lula chegar à presidência ele agiria para que o PT vete uma decisão do Congresso Nacional", diz ele.
Em 2007, o PT aprovou em resolução a defesa da legalização do aborto - posição que nunca foi revogada. O próprio Lula, em diversas ocasiões, defendeu que o tema fosse tratado como uma assunto de "saúde pública" — jargão usado pelos defensores da legalização para justificar a liberação da prática. Em abril deste ano, em um evento da Fundação Perseu Abramo, ele afirmou: "Quando que a madame ela pode fazer um aborto em Paris, ela pode escolher Berlim. Aqui no Brasil, ela não faz porque é proibido, quando na verdade deveria ser transformado numa questão de saúde pública e todo o mundo ter direito e não ter vergonha."
Além disso, apesar de Lula usar a carta para afirmar que jamais cogitou fechar igrejas, pelo menos um projeto de lei endossado por seu partido abriu essa possibilidade: uma proposta da deputada petista Iara Bernardi em 2006 previa, como punição por homofobia, a "suspensão do funcionamento dos estabelecimentos por prazo não superior a três meses", sem que houvesse exceção para igrejas. O projeto foi amplamente debatido na Câmara e acabou não sendo aprovado. Mais recentemente, governadores e prefeitos petistas determinaram o fechamento temporário de igrejas sob o pretexto de combater a pandemia.
O partido de Lula também defendeu o vereador Renato Freitas (PT), que liderou a invasão à igreja Nossa Senhora Rosário dos Pretos, em Curitiba, durante uma manifestação em fevereiro deste ano. Além disso, o PT e seus aliados são atuantes na promoção da agenda LGBT mais radical. E muitas das figuras ligadas ao partido demonstram hostilidade aberta contra as igrejas evangélicas.
Por tudo isso, é difícil crer que a carta de Lula vá influenciar um grande número de eleitores evangélicos. Yago Martins acredita que, embora parte dos eleitores de forma geral ainda se apeguem mais aos políticos do que às ideias dele, tem se tornado cada vez mais fácil identificar quem são os oportunistas. "Hoje, com as redes sociais, é mais fácil averiguar o que foi dito no passado e o modo como os políticos agiram e se as ações condizem com as promessas. A carta de intenções do Lula não parece condizer com as atitudes que o PT tem tomado ao longo da história", conclui.
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