O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu na quarta-feira (11) proibir sem delimitação temporal qualquer manifestação que ocupe ou bloqueie vias, rodovias, espaços e prédios públicos em todo o território nacional. A decisão de Moraes foi confirmada pela maioria da Corte nesta quinta-feira (12). Para dois juristas consultados pela Gazeta do Povo, a decisão é, em vários níveis, uma afronta à Constituição.
O problema, segundo eles, começa na ausência de competência do Judiciário para tomar uma decisão do tipo. Alessandro Chiarottino, professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela USP, diz que “a restrição ao direito de manifestação, se for generalizada ao país inteiro, necessariamente requer a decretação do estado de sítio”, o que só pode ser feito pelo presidente da República e requer anuência dos outros dois poderes. “Cria-se um estado de sítio via decisão judicial – o que per se é inconstitucional – e, ainda mais, é um estado de sítio que vai ser supervisionado por quem? Pelo próprio Judiciário?”, questiona Chiarottino.
O jurista Adriano Soares da Costa, ex-juiz de direito e especialista em Direito Eleitoral, afirma que “estamos vivendo uma situação muito anômala, sem previsão constitucional e com riscos severos para o exercício da própria cidadania”. “Trata-se de um poder de uma Corte sem qualquer previsão constitucional e precedentes na democracia, como disse o jornalista Glenn Greenwald”, comenta, em referência a tuítes de Greenwald que foram alvos de crítica da esquerda nas redes sociais.
Para ele, a decisão “termina criando a polícia do regime”, por ter um caráter excessivamente aberto e não especificar que tipo de manifestação se deve proibir. “É uma decisão tão aberta que dá ao guarda da esquina poder de prender qualquer um”, critica. “Que manifestações são vedadas? Com que conteúdo? Toda e qualquer manifestação? O grande problema é que nós não temos clareza da extensão da própria decisão, sobretudo para quem vai cumpri-la. Pode até haver prisões. É uma decisão de uma extensão em aberto, e aquele que executar a decisão vai estar com carta branca.”
Os juristas também veem como um problema a falta de delimitação temporal da decisão. “O próprio instrumento do estado de sítio tem um prazo determinado, que é um máximo de 30 dias. Sendo necessária uma prorrogação, teria que ser aprovada pelo Congresso Nacional”, comenta Chiarottino. “A proibição não pode ser ad aeternum. Tem que haver um limite temporal, já que se trata de uma medida de excepcionalidade”, afirma Soares da Costa.
No pedido que suscitou a decisão, a Advocacia-Geral da União (AGU) solicita a restrição do direito à manifestação “pontual e momentaneamente, diante da situação de absoluta excepcionalidade”. Mas, em sua decisão, Moraes não estabelece o tempo de duração das restrições.
Já o procurador da República e professor de Direito Constitucional André Uliano, colunista da Gazeta do Povo, concorda com as determinações feitas por Moraes. Na visão dele, o texto da decisão está “dentro de um contexto específico”, tratando de uma postagem que circula nas redes sociais com o título “MEGA MANIFESTAÇÃO NACIONAL – PELA RETOMADA DO PODER”.
“Dentro do contexto atual, pode-se concluir que uma manifestação para ‘retomada do poder’, poucos dias após os eventos de domingo, tem contornos ilícitos e merece atenção especial”, afirma. “O resultado eleitoral já não possui nenhum mecanismo institucional disponível de contestação, e pedidos de atuação das Forças Armadas para revertê-lo são ilícitos, de acordo com o art. 286, parágrafo único, do Código Penal. Esse crime não exige violência ou grave ameaça [para merecer punição]”, acrescenta.
Decisão sobre manifestação inventa crimes e sanções e proíbe o que já é proibido, afirma jurista
Na visão de Chiarottino, é inconstitucional estabelecer em sentença judicial punições para infrações e crimes que nem sequer existem ou cujas penas já estão determinadas por lei. Já há sanções previstas no Código de Trânsito Brasileiro para quem realiza bloqueios de vias públicas, e a detenção por desobediência ou resistência à prisão já é prevista pelo Código Penal.
A decisão de Moraes estabelece multas diferentes das que estão previstas no Código de Trânsito Brasileiro para os bloqueios. Além disso, no texto, o ministro determina a prisão em flagrante “daqueles que, em desobediência às providências adotadas para o cumprimento desta decisão, ocupem ou obstruam vias urbanas e rodovias”. Fica pouco claro se a prisão em flagrante só ocorrerá em caso de desacato à ordem de desobstruir as vias – o que a lei já prevê – ou se o bloqueio motivará a prisão sem um diálogo prévio com a autoridade – o que extrapolaria a lei.
“Não dá para você, por sentença, inventar novos crimes. Nem o mecanismo do estado de sítio ou de defesa permite isso. Os crimes são aqueles previstos no nosso Código Penal e na legislação extravagante”, diz Chiarottino. “Agora, vamos lembrar: o direito de manifestação não é o direito de bloquear vias públicas, a menos quando exista uma legislação pontual para isso. Por exemplo, para a avenida Paulista, existe uma lei municipal que permite manifestações, com algumas limitações. Mas a regra é que o direito de manifestação não permite às pessoas ocuparem as vias públicas. Permite ocupar locais públicos ou acessíveis ao público, como praças, parques, locais abertos… Os lugares típicos são esses”, ressalta. Pela decisão de Moraes, vale recordar, até mesmo os protestos em espaços públicos estão proibidos.
Soares da Costa destaca um paradoxo das decisões recentes de Moraes em nome da defesa da democracia: já não é possível protestar contra elas sem sofrer algum tipo de sanção. “Eventualmente, por exemplo, o protesto sobre a prisão de 1.200 pessoas passa a ser também objeto de sanção? Esse é que é o grande problema. Essa decisão impõe limitações à cidadania, à livre manifestação, à liberdade de expressão… E cria um ambiente político que nós não conhecemos na democracia”.
Leia na íntegra o trecho principal da decisão de Moraes:
DEFIRO INTEGRALMENTE OS PEDIDOS FORMULADOS PELO ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO (PET 792/2023, doc. 3.627), para:
(a) DETERMINAR às Autoridades Públicas de todos os níveis federativos, em especial os órgãos de segurança pública, que adotem as providências necessárias para IMPEDIR QUAISQUER TENTATIVAS DE OCUPAÇAO OU BLOQUEIO DE VIAS PÚBLICAS OU RODOVIAS, bem como de espaços e prédios públicos em todo o território nacional, notadamente — mas não só — nos locais indicados na postagem "MEGA MANIFESTAÇÃO NACIONAL — PELA RETOMADA DO PODER", reproduzida no requerimento da AGU (e-doc. 3.627);
(b) DETERMINAR A PROIBIÇÃO DE INTERRUPÇÃO OU EMBARAÇO À LIBERDADE DE TRÁFEGO EM TODO TERRITÓRIO NACONAL, bem como o acesso a prédios públicos, sob pena de APLICAÇÃO IMEDIATA, PELAS AUTORIDADES LOCAIS, DE MULTA HORÁRIA NO VALOR DE R$ 20.000,00 (vinte mil reais) PARA PESSOAS FÍSICAS E DE R$ 100.000,00 (cem mil reais) PARA PESSOAS JURÍDICAS que descumprirem essa proibição por meio da participação direta nos atos antidemocráticos, pela incitação (inclusive em meios eletrônicos) ou pela prestação de apoio material (logístico e financeiro) à prática desses atos;
(c) DETERMINAR às autoridades locais, em especial os agentes dos órgãos de segurança pública federais e estaduais, que deverão, sob pena de responsabilidade pessoal, EXECUTAR A PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO daqueles que, em desobediência às providências adotadas para o cumprimento desta decisão, ocupem ou obstruam vias urbanas e rodovias, inclusive adjacências, bem como procedam à invasão de prédios públicos;
(d) DETERMINAR às autoridades locais a IDENTIFICAÇÃO DE TODOS OS VEÍCULOS UTILIZADOS NA PRÁTICA DESSES ATOS, COM A QUALIFICAÇÃO DOS PROPRIETÁRIOS RESPECTIVOS, BEM COMO A INDISPONIBILIDADE DESSES VEÍCULOS, com o imediato registro desse gravame junto ao órgão de trânsito local;
(e) DETERMINAR a expedição de ofício à empresa Telegram, para que, no prazo de 2 (duas) horas, proceda ao BLOQUEIO dos canais/perfis/contas discriminados no e-doc 3.627, bem como de quaisquer grupos que sejam administrados pelos usuários abaixo identificados, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais), com o fornecimento de seus dados cadastrais a esta SUPREMA CORTE e a integral preservação de seu conteúdo.
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