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Entenda o que é a dívida de R$ 1 bilhão das igrejas.
Entenda o que é a dívida de R$ 1 bilhão das igrejas.| Foto: Ester Vasconcelos/ Arquivo Pessoal

Ao sancionar, no último dia 13, o Projeto de Lei 1.581/2020, o presidente Jair Bolsonaro vetou dois de três dispositivos sugeridos em emenda (leia abaixo) de autoria do deputado David Soares (DEM-SP), filho do pastor R. R. Soares, que diziam respeito a "dívidas" de entidades religiosas de diferentes denominações.

Procurados, especialistas da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure) explicam que o projeto, o qual, sob um aspecto geral, trata de acordos da União com credores de dívida pública, não previa novos privilégios às igrejas e, além disso, não protege entidades religiosas que atuam em desconformidade com suas finalidades essenciais. Ele apenas insere na Lei 7.689/88 uma prática já vigente e amparada por outras normativas. Quanto ao suposto perdão de R$ 1 bilhão de dívidas das entidades, uma análise breve da proposta e consulta aos dados da Lista de Devedores da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) revela que não é disso e desse valor que, de fato, se trata.

Nesta semana, o presidente da bancada evangélica no Congresso, deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), sinalizou que os parlamentares devem derrubar o veto do presidente.

Entenda, abaixo, do que se trata o projeto e as consequências da decisão de Bolsonaro:

O que previa o Projeto de Lei 1581

Apresentado em 6 de abril e aprovado pelo Congresso no último dia 18 de setembro, o então PL 1581/2020, de autoria do deputado Marcelo Ramos (PL), trata, sob um aspecto geral, da regulamentação de acordos com credores de dívida pública de alto valor. O objetivo é que os recursos obtidos através dos acordos sejam destinados ao enfrentamento da situação de emergência de saúde pública causada pelo novo coronavírus.

Dispositivo relacionado a entidades religiosas partiu de emenda

Durante a tramitação do PL na casa, o deputado Soares propôs emenda sugerindo a modificação da lei 7.689/88, que trata especificamente da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de pessoas jurídicas. Esse tributo incide exclusivamente sobre empresas cuja finalidade é o lucro - o que não é o caso das entidades religiosas ou ONGs.

Proposta não trata de imunidade tributária

A proposta do parlamentar, em realidade, não modifica relações tributárias já existentes ou prevê privilégios a igrejas. Mas formaliza prática que, embora não seja expressa de forma clara, é vigente e amparada por outras normativas. Isso é, o deputado pede que a Lei 7.689 passe a expressar claramente a isenção às instituições religiosas da incidência do tributo CSLL, cujo fato gerador é o lucro.

Não se trata, portanto, de imunidade tributária, tema já regulamentado pela Constituição e por outras leis que amparam, por exemplo, congressistas e sindicatos, como explica reportagem realizada pela Gazeta do Povo. A proposta de Soares também não exclui a possibilidade de que igrejas sejam tributadas nesse sentido, caso atuem em desconformidade com sua finalidade maior (entenda melhor abaixo).

Como cita a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure) em documento explicativo, é necessário incluir claramente o dispositivo na lei pelo fato de que “alguns agentes do fisco, por absoluta ignorância, só reconhecem situações de não incidência diante de regra jurídica expressa”.

Entidades religiosas, explica a associação, não deveriam ser consideradas no rol desses contribuintes específicos à medida em que sua atividade não se equipara à exercida por empresas, cuja finalidade maior é a obtenção de lucros. “A atividade genuinamente religiosa não possui semelhança com a atividade empresária, sendo notória a diferença de objetivos: enquanto a atividade empresária é norteada pelo lucro e marcada pelo viés econômico, a atividade religiosa está vinculada essencialmente à propagação da fé, não sendo dotada de uma organização voltada para a produção, transformação ou circulação de bens e serviços”, diz a Anajure.

"As atividades religiosas não devem ser confundidas com atividades econômicas geradoras de lucros, uma vez que os valores incorporados pelas igrejas a título de dízimos e ofertas não são impulsionadores de atividades comerciais, servindo, como regra, para a manutenção dos templos, para o pagamento de valores destinados à subsistência de obreiros, para o custeio de iniciativas de cunho evangelístico e para a capacitação espiritual de membros e líderes, dentre outras, tarefas estas desprovidas de intuitos de lucro [...]. Assim, se a igreja, como regra, não desenvolve atividade econômica nem, por conseguinte, aufere lucro, apenas administrando valores de dízimos e ofertas entregues para custear a manutenção de suas atividades essenciais, não há que se falar em ocorrência de fato gerador nem, portanto, em incidência do referido tributo".

Por outro lado, autuações às igrejas são legítimas quando há desvio de finalidade – como atividades para obtenção de lucro - por parte das instituições. E, portanto, instituições que atuarem em desconformidade não têm privilégios amparados na proposta de Soares.

“Ainda que as igrejas, de modo geral, não pratiquem atividade econômica, é preciso considerar as situações nas quais determinadas instituições extrapolam as suas finalidades essenciais e passam a operar sob um norte econômico, e não mais religioso", afirma a associação. "Em contextos assim, apuradas as circunstâncias, é possível que o fisco – a partir de parâmetros claros e transparentes – efetue a cobrança da CSLL, uma vez que o lucro, antes não perseguido, tornou-se um objetivo no âmbito da instituição, numa conjuntura de desnaturação das finalidades essenciais da igreja".

Esse primeiro dispositivo da emenda de Soares foi vetado por Bolsonaro.

Anulação de autuações passadas deixa de fora igrejas que cometeram desvio de finalidade

Soares também propôs que autuações já existentes relacionadas à CSLL fossem consideradas nulas. Por exemplo, quando agentes do fisco, "equivocadamente", não reconheceram a não incidência do tributo sobre igrejas e consideraram que as entidades deveriam pagar tributo por lucro. Neste dispositivo, contudo, estão amparadas apenas as entidades religiosas cuja atividade tem conformidade com a finalidade da instituição, ou seja, a não obtenção de lucro.

A ideia é salvaguardar igrejas da interpretação equívoca, para Soares, por parte do fisco: "as autuações afrontam diversos dispositivos do ordenamento jurídico, mas por não serem taxativos o suficiente, permitem interpretações distorcidas por parte dos órgãos do fisco".

"Nos últimos tempos, as entidades religiosas vem sendo sujeitos passivos de autuações oriundas de interpretações equivocadas da legislação, sem levar em consideração posteriores modificações do ordenamento", afirma o parlamentar. "Tais autuações acabam por praticamente inviabilizar a continuidade dos relevantes serviços prestados por tais entidades. Visando combater essa prática, torna a lei ainda mais clara e com isso reduzir a judicialização e até mesmo o gasto equivocado de horas de trabalho do fisco com entidades religiosas".

"O PL 1.581 não diz que as igrejas que atuam em desvirtuação de sua finalidade essencial serão dispensadas do pagamento da CSLL. Não há impedimento de que o fisco efetue cobranças nessas situações”, explica a Anajure.

Contribuição previdenciária de ministros religiosos

Um terceiro dispositivo presente na emenda de Soares trata exclusivamente da cobrança de contribuição previdenciária das igrejas com relação às chamadas prebendas – salários de ministros religiosos, como padres e pastores.

Por decisão recente da Coordenação-Geral de Tributação da Receita Federal, foi estabelecido que os "recursos para manutenção de atividades inerentes ao exercício do mister religioso" - tais como ajudas de custo de moradia, transporte, formação educacional – "não ensejam pagamento de contribuição previdenciária".

O fato de as prebendas serem pagas, muitas vezes, em montantes diferenciados, não as sujeita à contribuição previdenciária, estabeleceu o órgão. Por outro lado, quando são estabelecidas metas aos ministro religiosos, por exemplo, o tributo deve incidir.

"Em situações nas quais as igrejas destinem valores que não são necessários à subsistência do ministro nem ao exercício de atividades essencialmente religiosas, será possível atribuir às instituições o pagamento de contribuição social. Isso ocorrerá, mais uma vez, pela desvirtuação das finalidades essenciais das atividades eclesiásticas", explica a Associação de Juristas Evangélicos.

A proposta de Soares, portanto, não ampara dívidas previdenciárias decorrentes de irregularidades no pagamento de funcionários administrativos ou tributos de outra natureza. "Ainda que o projeto de lei seja mantido na íntegra, não torna tais pagamentos desnecessários (da contribuição relativa aos funcionários administrativos), uma vez que se refere estritamente à contribuição previdenciária incidente sobre as prebendas", afirma a Anajure.

A associação ainda sugere que, "em casos de irregularidades no pagamento da contribuição previdenciária relativa aos funcionários administrativos, que igrejas busquem regularizar a situação perante o fisco e não defende a anulação de tais débitos – algo que também não é sustentado no PL 1581".

Haverá perdão para dívidas de R$ 1 bi?

Conforme dados da Lista de Devedores da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a dívida de R$ 1 bilhão por parte das entidades religiosas, valor amplamente citado em noticiários, diz respeito ao total de débitos de igrejas com o fisco. Esses valores vão muito além da CSLL e da contribuição previdenciária sobre prebendas: a exemplo de FGTS, multas criminais, débitos não tributários.

Embora o documento da Procuradoria não discrimine claramente a natureza das dívidas, a Anajure lembra que, de toda forma, o valor de R$ 1 bi ampara todos os débitos, e não apenas os relacionados à CSLL e contribuição previdenciária, das quais trata exclusivamente a proposta de Soares. Portanto, não há perdão de dívida de R$ 1 bilhão para organizações religiosas.

Como mostrou reportagem da Gazeta, o total de débitos de igrejas ultrapassa R$ 1 bi. As instituições possuem principalmente dívidas trabalhistas ou com a Previdência Social. A maior devedora é a Igreja Internacional da Graça de Deus (R$ 144 milhões em débitos), fundada por R. R. Soares.

*A emenda de autoria do deputado David Soares:

*A íntegra do PL 1581:

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