As crescentes restrições do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a liberdade de expressão podem se alargar nos próximos anos. Aguarda uma decisão dos ministros, por exemplo, uma ação sobre como e até que ponto um chefe de Estado pode questionar as urnas eletrônicas. Outro processo discute se ativistas podem constranger empresas a cancelar patrocínio a uma prática que combatem. Há ações que podem levar um parlamentar a ser responsabilizado criminalmente por críticas à ideologia de gênero. Noutro caso, a Corte decidirá se um veículo de comunicação pode ser punido por uma ofensa dita por uma pessoa entrevistada.
Nos últimos anos, o direito à livre expressão e manifestação do pensamento tornou-se um tema candente no tribunal, com limites cada vez mais rígidos sobre o que pode ou não ser dito, seja por pessoas comuns, por comentaristas que se projetaram na internet e até pelos parlamentares, que, segundo a Constituição, deveriam gozar de imunidade contra processos judiciais pelo direito de proferir “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
Até alguns anos atrás, o STF parecia caminhar numa tendência mais liberal. Em 2015, por exemplo, por unanimidade, os ministros decidiram que não era necessária uma autorização prévia de uma personalidade para que outra escrevesse e publicasse uma biografia.
“Na ciranda de roda da minha infância, alguém ficava no centro gritando: ‘cala a boca já morreu, quem manda em minha boca sou eu’. O tempo ensinou-me que era só uma musiquinha, não uma realidade. Tentar calar o outro é uma constante. Mas na vida aprendi que quem, por direito, não é senhor do seu dizer, não se pode dizer senhor de qualquer direito”, disse, em voto que se tornou célebre, a ministra Cármen Lúcia, relatora da ação.
Um dos mais importantes precedentes sobre o tema foi firmado, em 2018, na decisão que derrubou regras da lei eleitoral que impediam emissoras de rádio e televisão de veicular programas de humor envolvendo candidatos e partidos durante o período de campanha. O objetivo alegado anteriormente era evitar que fossem ridicularizados ou satirizados.
“A Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias [...] O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional”, afirmou, à época, Alexandre de Moraes, seguido por todos os colegas.
A partir de 2019, as críticas à atuação dos ministros se popularizam nas redes sociais, impulsionadas em boa medida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) – irritado com decisões contrárias ao governo – e também por procuradores da Lava Jato – espantados com retrocessos no combate à corrupção. O STF então deu uma guinada, passando a considerar ilícitos determinados discursos, sob a argumentação de que representavam ofensas à instituição ou por supostamente incitar violência contra seus integrantes.
Conteúdos alegadamente ameaçadores passaram, paulatinamente, a serem tachados como “ataques à democracia”, “discursos de ódio” ou “notícias fraudulentas”. Seus emissores passam ser investigados nos inquéritos das “fake news”, dos “atos antidemocráticos” e no das “milícias digitais”, tocados com mão de ferro por Alexandre de Moraes, sob protestos de parte da comunidade jurídica e política.
A decisão mais dura dentro dessa nova tendência foi a condenação do ex-deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) a quase 9 anos de prisão por causa de ameaças e xingamentos a ministros num vídeo espalhado nas redes. Na seara eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o mandato do ex-deputado estadual Fernando Francischini (PL-PR) por apontar fraude nas urnas no dia da eleição de 2018. Em 2022, não só conteúdos que questionassem as urnas passaram a ser banidos, mas também textos “sabidamente inverídicos” ou “gravemente descontextualizados” sobre candidatos, sempre segundo o entendimento dos ministros do TSE.
Agora, o STF pode ampliar as hipóteses restritivas no campo da liberdade de expressão com novos casos pendentes de análise. Entenda abaixo alguns dos principais debates a serem travados.
Críticas às urnas eletrônicas
O direito de questionar e criticar as urnas eletrônicas adotadas no Brasil foi defendido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), num recurso dirigido ao STF contra uma multa de R$ 20 mil, impostas a ele pelo TSE, por causa de uma reunião que promoveu com embaixadores, no ano passado, para explicar suas suspeitas sobre o sistema eletrônico de votação.
Ele argumenta, em primeiro lugar, que o evento, no Palácio da Alvorada, em julho de 2022 – antes do início oficial da campanha –, era um ato de governo, não para buscar votos – prova disso é que o público era formado por diplomatas de outros países, que não votam no Brasil.
O objetivo, ainda segundo a defesa, era apenas discutir o sistema eleitoral brasileiro e dar mais transparência ao processo. Uma evidência disso seria o convite feito por Bolsonaro para que o então presidente do TSE, Edson Fachin, participasse do evento, assim como presidentes de outros tribunais superiores de Brasília – nenhum deles compareceu.
“Foram apresentadas todas as dúvidas sobre o sistema eletrônico de votação, de forma direta e às claras, para Comunidade Internacional, com abertura aos Chefes dos Poderes”, diz o recurso levado ao STF. Para os advogados, ao multarem Bolsonaro por propaganda irregular, os ministros do TSE cometeram um “erro”, “em tomar uma proposta de aprimoramento do processo democrático como se se tratasse de ataque direto à democracia participativa”. “O que se percebe das falas do representado Jair Messias Bolsonaro, através de um exame sereno feitos com as lentes do necessário diálogo institucional e promoção da transparência eleitoral, é um convite ao aprimoramento do sistema e não um ataque às instituições”, alegaram.
Eles ainda dizem que, no evento, Bolsonaro falou na condição de chefe de Estado, não na condição de candidato à reeleição. Por isso, deveria ter respeitada sua liberdade de expressão. “Há clara interferência no mercado de ideias no curso do processo de decisão eleitoral, atingindo-se o cerne da livre escolha das candidaturas pelos eleitores”, diz o recurso.
O ministro Alexandre de Moraes manteve a multa de R$ 20 mil aplicada pela Justiça Eleitoral e afirmou que Bolsonaro “extrapolou os limites de atuação como chefe de Estado”.
Cabe agora a Moraes, na condição de presidente do TSE, analisar se admite o envio do recurso ao STF. Ele deve avaliar, basicamente, se há questões constitucionais relevantes apresentadas pela defesa de Bolsonaro.
Se ele admitir o recuso, ele será enviado ao STF, que então fará nova análise, para avaliar se as questões constitucionais tem repercussão geral, isto é, se possui relevância social, política, econômica ou jurídica que ultrapassem os interesses das parte do processo. A decisão, nesses casos, passa a valer para todos os casos semelhantes.
Pressão sobre anunciantes com acusações falsas
Em 2015, o STF reconheceu a repercussão geral – portanto, a relevância constitucional – de um recurso de uma ONG de defesa dos animais contra uma decisão judicial que a proibiu de contactar patrocinadores de um rodeio, para pressioná-los a retirar apoio do evento. A sentença condenou a entidade por danos morais e restringiu suas publicações na internet.
O recurso foi apresentado pelo Projeto Esperança Animal (PEA), que denunciava a crueldade da utilização de animais na Festa do Peão de Barretos, no interior de São Paulo. Em 2007, a ONG promovia em seu site a campanha “Quem patrocina e apoia rodeios também tortura o bicho”. Na página, listava empresas que patrocinavam o evento, e instava visitantes a enviar a elas um e-mail pedindo que repensassem o apoio dado ao rodeio.
Os organizadores da Festa do Peão acionaram a Justiça alegando que as acusações divulgadas pela PEA eram falsas. A ONG afirmava que um artefato de couro, chamado sedém, era amarrado sobre o pênis ou saco escrotal do touro, comprimindo canais que ligam os rins à bexiga, provocando rupturas viscerais, fraturas ósseas, hemorragias subcutâneas e até morte. Pregos, pedras, alfinetes e arames em forma de anzol seriam colocados nos sedéns ou sob a sela. Esporas pontiagudas causariam lesões no pescoço e baixo-ventre e perfuração do globo ocular. Substâncias abrasivas, como a pimenta, seriam introduzidas no ânus do animal.
“Golpes e marretadas na cabeça fazem o animal saltar descontroladamente, resultando em quedas, fratura de perna, pescoço, coluna, distensões, contusões etc.. Em determinadas provas, os animais sofrem ruptura da medula espinhal, resultando na morte instantânea. Alguns sofrem lesões sérias nos tendões e músculos. Outros ficam paralíticos e/ou têm seus órgãos internos rompidos, causando uma morte lenta a dolorosa”, dizia o site da ONG.
Os organizadores da Festa do Peão negaram maus-tratos e afirmaram que a PEA enviou a patrocinadores imagens de rodeios nos Estados Unidos. “A ré estaria, assim, exercendo abusivamente sua liberdade de expressão, prejudicando patrocínios essenciais para o evento, devido aos altos custos para a realização de um Grande Rodeio. No caso, o evento constituiria a mais importante referência cultural sertaneja do interior brasileiro, realizado desde 1956 e atualmente com repercussão internacional”, afirmaram no recurso.
Ao decidir julgar o caso, o STF entendeu que a discussão vai além dos interesses das partes, pois discute se a liberdade de expressão abarca a pressão pelo boicote de determinado ente privado com informações duvidosas.
Isso poderia se aplicar, por exemplo, a outros ativistas que fazem campanhas contra anunciantes com base em intimidação e constrangimento. É o caso do já conhecido Sleeping Giants, que busca retirar propagandas de veículos que dão espaço a comentaristas de direita sob o pretexto de que eles disseminariam “fake news” e “discurso de ódio”.
“A questão constitucional em exame consiste em definir os limites da liberdade de expressão, ainda que do seu exercício possa resultar relevante prejuízo comercial, bem como fixar parâmetros para identificar hipóteses em que a publicação deve ser proibida e/ou o declarante condenado ao pagamento de danos morais, ou ainda a outras consequências jurídicas que lhe possam ser legitimamente impostas”, diz a decisão do STF que admitiu o recurso.
O relator do caso é o ministro Luís Roberto Barroso e ainda não há data para julgamento do caso.
Mais reduções da imunidade parlamentar
A imunidade parlamentar, garantida pela Constituição para proteger e fomentar o debate no Congresso, especialmente sobre os temas mais delicados e controversos, já vem sendo gradativamente restringida pelo STF. Tradicionalmente, a jurisprudência da Corte dizia que não eram protegidas ofensas enunciadas fora do Parlamento e aquelas que não tinham relação com o mandato. O caso Daniel Silveira, julgado em 2022, mostrou que a imunidade foi afastada quando o alvo das críticas era o STF. Depois, o STF também relativizou a imunidade do senador Jorge Kajuru (PSB-GO), por zombar de adversários políticos de seu estado.
Referiu-se a um deles como “pateta bilionário”, “cuja fortuna ninguém sabe de onde vem”. Disse ainda que fazia um “trabalho inútil” no Senado, que era um “senador turista”, que não trabalha e que “entrou na política por negócio”. Ao criticar um deputado desafeto, o acusou de comandar uma quadrilha, o chamou de “vigarista”, “lixo”, “bandido”, “rei do toma lá dá cá”, “homem de bens”, “falso”.
Inicialmente, as queixas contra ele foram rejeitadas, porque o antigo relator do caso, Celso de Mello, já aposentado, considerou que as declarações tinham ligação com o mandato do senador. “Não obstante os doestos e as afirmações moralmente contumeliosas e socialmente grosseiras atribuídas ao querelado, a incidência tutelar da imunidade parlamentar material, no entanto, é suscetível de reconhecimento, no caso, em face da situação de antagonismo político que se registra, no plano regional”, afirmou.
Em maio de 2022, a Segunda Turma do STF reviu esse entendimento. Seguindo Gilmar Mendes, a maioria dos ministros considerou que ofensas contra adversários não se relacionam com o debate público sobre assuntos políticos.
“Estamos diante de um caso de ofensa pura e simples, de ataques destinados a destruir reputações, do achaque, das ofensas claramente dolosas injuriosas e difamatórias, o que não se confunde com a crítica ácida ou contundente vinculada ao debate de questões de interesse público”, disse depois Gilmar Mendes.
Agora, dois novos casos poderão levar os ministros a restringir ainda mais a imunidade. Num primeiro caso, decidirão se expressões de suposta misoginia estariam protegidas. No caso concreto, a deputada Tabata Amaral (PSB-SP) acusou o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) de difamá-la ao sugerir que ela propôs projeto de concessão de absorventes femininos para mulheres pobres para beneficiar o empresário Jorge Paulo Lemann, sócio de fábricas do setor. Dias Toffoli já havia arquivado o caso, mas Tabata recorreu. Alexandre de Moraes votou por abrir uma ação penal e foi seguido pela maioria dos ministros, tornando Eduardo Bolsonaro réu.
Além desse, um novo caso poderá trazer novos limites à imunidade. O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), o mais votado do país em 2022, poderá ser responsabilizado criminalmente por suposta transfobia. Na tribuna da Câmara, ele vestiu uma peruca, dizia que naquele momento se sentia mulher e passou a criticar a entrada de transexuais que se consideram mulheres no esporte feminino e em banheiros femininos. Ainda não há decisão do STF sobre esse caso; as queixas foram distribuídas por sorteio para o ministro André Mendonça.
Responsabilização de veículo por falas de entrevistado
Em 2020, o plenário do STF começou a julgar se o jornal Diário de Pernambuco pode ser condenado por danos morais em razão de declarações ofensivas de um entrevistado contra uma terceira pessoa. O Tribunal de Justiça de Pernambuco entendeu que não havia direito à indenização.
“A matéria jornalística, enquanto instrumento que visa apenas levar informação e conhecimento à sociedade, só pode ser considerada como abusiva e causadora de lesão à pessoa do noticiado, quando tratar o caso de forma leviana, inescrupulosa ou mesmo mercenária – no caso em tela, a publicação jornalística que ensejou a ação indenizatória cuidou de apenas levar ao conhecimento público texto de uma entrevista de um terceiro sobre determinado fato que contém fundo histórico, não se configurando assim em matéria de cunho difamador ou mesmo prejudicial à pessoa do noticiado”, diz a decisão de segunda instância.
O julgamento do STF já tem sete votos, com três diferentes posições. Marco Aurélio Mello, o relator e já aposentado, considerou que não há direito de a pessoa ofendida ser indenizada pelo jornal pelas declarações do entrevistado. “Empresa jornalística não responde civilmente quando, sem emitir opinião, veicule entrevista na qual atribuído, pelo entrevistado, ato ilícito a determinada pessoa”, considerou o ministro, que foi seguido por Rosa Weber.
Edson Fachin considerou que é devida a indenização quando o veiculo reproduz a acusação “sem aplicar protocolos de busca pela verdade objetiva e sem propiciar oportunidade ao direito de resposta”. Ele foi seguido pela ministra Cármen Lúcia.
Uma terceira posição foi aberta por Alexandre de Moraes, para quem há direito de indenização. “A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, não permitindo qualquer espécie de censura prévia, porém admitindo a possibilidade posterior de análise e responsabilização por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas”. Ele foi seguido por Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.
O julgamento parou em agosto de 2020. Ainda faltam votar Luís Roberto Barroso, Kassio Nunes Marques, Luiz Fux e Gilmar Mendes. Não há data para retomada.
Revisão do Marco Civil da Internet
Uma questão semelhante deverá ser discutida num julgamento que pode mudar a atual regra do Marco Civil da Internet, segundo a qual redes sociais e sites só podem ser responsabilizada pelo que publicam seus usuários e visitantes caso o conteúdo seja julgado irregular pela Justiça e haja descumprimento de uma ordem de remoção, dirigida às empresas dessas plataformas.
O julgamento sobre o assunto chegou a ser marcado para junho do ano passado, mas foi retirado de pauta pela presidente do STF, Rosa Weber. Há grande interesse dos ministros em rever essa regra. Eles querem que as redes sociais sejam mais proativas para remover ou reduzir ao máximo o alcance de postagens que representem ataques às instituições. A pressão por isso se acentuou após as invasões e atos de vandalismo praticados contra as sedes dos Poderes em 8 de janeiro.
A ideia é que elas restrinjam esse tipo de conteúdo da mesma forma como impedem a publicação de violência explícita e pornografia infantil, por exemplo. A decisão do STF tende a direcionar a formulação de uma nova regra no Congresso sobre a questão, no projeto de lei das “fake news”.
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