O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional, em 24 de abril, mais uma lei municipal que tentava proibir referências à ideologia de gênero nos materiais didáticos utilizados nas escolas de ensino fundamental. De acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR), que ajuizou a ação, em 2015, a legislação do município de Novo Gama (GO) estaria contrariando dispositivos constitucionais, como direito à igualdade, laicidade do Estado, pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.
Para negar a validade da norma municipal, o relator da ação, o ministro Alexandre de Moraes, entendeu que Novo Gama não tinha competência constitucional para tratar de currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino ou modo de exercício da atividade docente. O ministro Edson Fachin, que acompanhou o voto do relator com ressalvas, entendeu ainda que a forma como estava redigida a lei 1.516/2015 de Novo Gama impediria qualquer discussão de gênero em sala de aula, dando margem a preconceito, e evocou a “laicidade do Estado” – dando a entender que existiriam provas científicas da existência de uma “identidade de gênero”, e que pensar diferente seria apenas uma questão questionável de cunho moral ou religioso.
Além da ação em questão, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 457, o STF já decidiu sobre a proposta de uma lei de Londrina (PR), na ADPF 600, e ainda deve julgar outras inúmeras ações similares, de outros municípios e estados, como as ADPFs 461 (Paranaguá/PR), 462 (Blumenau/SC), 460 (Cascavel/PR), 467 (Ipatinga/MG) e 522 (Petrolina/PE) e as ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) 5537 e 5580, do estado de Alagoas.
Os dois lados da balança
A polêmica em torno dessas legislações é grande: enquanto alguns juristas concordam com a decisão do STF com relação à inconstitucionalidade das reivindicações – definir conteúdo seria uma prerrogativa da União –, movimentos contrários ao ensino da ideologia de gênero no ensino básico recordam que, em 2014, na discussão do Plano Nacional de Educação (PNE), a presença do assunto “teoria de gênero” foi rejeitada pelos congressistas após grande manifestação popular e, sendo assim, as leis que enfrentam questionamentos no STF estariam em acordo com as diretrizes aprovadas no PNE.
Outro ponto é que a abordagem da teoria de gênero em sala de aula entraria em conflito com tratados de direitos humanos internacionais assinados pelo Brasil, que determinam que os filhos devem receber educação moral ou religiosa que esteja de acordo com as convicções dos pais.
Os grupos contrários ao ensino da ideologia de gênero negam ainda a etiqueta de que a ideologia de gênero seria uma questão moral ou religiosa. Para eles, falta cientificidade em um ensino que negue o seguimento normal do sexo biológico como padrão e “convide” os alunos a fazerem experiências de mudança de sexo – em aulas questionáveis como a presença de drag queens ou o uso de imagens atraentes para as crianças, como o unicórnio, para representar um projeto de homem que pode ser qualquer coisa.
Acácio Miranda, advogado especialista em Direito Constitucional, aponta que a redação de boa parte dessas propostas de leis municipais é falha, não deixando claro o que estaria proibido dizer em sala de aula. Além disso, ele concorda que o conteúdo das propostas muitas vezes não está em conformidade com as determinações constitucionais. “Há uma desconformidade dessas legislações com relação à Constituição Federal, que ampara a liberdade de informação no sentido de termos acesso a todo tipo de informação desde que não seja ofensiva. Uma coisa é alguém incentivar uma criança ou um adolescente a assumir um determinado comportamento, e outra é os alunos terem acesso a essas informações e entenderem que cada um tem suas opções", afirma.
O advogado também concorda que o tema é complexo e sensível, mas que, na prática, dificilmente seria afastado das salas de aulas, até mesmo por curiosidade dos próprios alunos. “Infelizmente ou felizmente é impossível tratarmos de determinados assuntos sem entrar numa seara complexa. Quando se trata do ensino de sexualidade, acredito que, inevitavelmente, até pela quantidade de informações que os adolescentes têm acesso, vão surgir temas como ideologia de gênero quando o professor estiver tratando do assunto. Na prática, é uma linha muito tênue”.
Entretanto, grupos que se posicionam contra a abordagem do tema no ensino básico, como a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) – uma das entidades aceitas pelo STF como amicus curiae nas ações dos municípios –, afirmam que as leis que enfrentam questionamentos no Supremo são válidas e não contrariam a “laicidade do Estado”, já que correspondem ao que foi aprovado na discussão do Plano Nacional de Educação.
“O Congresso Nacional, que é o representante legítimo e democrático do povo brasileiro rejeitou o estabelecimento da teoria de gênero no Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014) e, portanto, essas legislações estão em acordo com as diretrizes que foram aprovadas. Assim, pelo princípio da hierarquia das leis, e tendo em vista o fundamento constitucional e legal de validade dos planos estaduais e municipais de educação, esses não podem aprovar diretrizes, metas e estratégias diferentes do PNE. Com base nisso, compreendemos que essas leis são válidas e legítimas e correspondem àquilo que foi aprovado pelo Congresso”, argumenta Felipe Augusto, diretor-executivo da Anajure.
Augusto concorda também que o respeito aos tratados de direitos humanos internacionais é outro critério que deve ser observado nesse debate, citando, como exemplo, o artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; o artigo 13 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e o artigo 12 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) – também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.
“A teoria de gênero afasta critérios claros da própria biologia. Existem muitas lacunas, incongruências e contradições, de forma que não consideramos razoável e prudente adotar e aplicar nas escolas brasileiras uma corrente que é desprovida de comprovação biológica e científica. Entretanto, a aplicação do tema esbarra também em outro fator, que diz respeito ao direito dos pais de influir na educação dos seus filhos. Os principais tratados de direitos humanos internacionais estabelecem que é tarefa da família a formação moral e religiosa das crianças”, declara.
A questão de gênero e os problemas com as propostas municipais
O advogado Miguel Nagib, coordenador do movimento Escola Sem Partido, reforça a importância de observar o que foi aprovado na discussão do PNE.
“Não apenas em 2014, com a aprovação do plano em âmbito nacional, mas nos dois anos seguintes, com as discussões estaduais e municipais dos planos de educação, houve uma grande manifestação de uma enorme parcela da população brasileira contra a ideologia de gênero em sala de aula. Muitos pais estão terrivelmente angustiados com essa questão. Porém, com a decisão proferida em relação ao município de Nova Gama, o STF passou por cima de tudo isso e não deu a menor atenção ao drama dessas famílias e ao que foi aprovado anteriormente pelo Congresso”.
Ele afirma também que, caso alguma lei municipal que impeça o ensino de ideologia de gênero seja aprovada, isso não significa que professores não possam dar aulas sobre sexualidade ou sobre o funcionamento do aparelho reprodutor masculino e feminino, por exemplo. Eles terão de evitar o proselitismo nessas questões, além de respeitar o direito dos pais dos alunos sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos.
“O modo como a temática de gênero vem sendo explorada no ensino não tem nada a ver com ciência. Eles não estudam do ponto de vista objetivo, científico, da biologia e da genética, mas sempre na base do dogmatismo e do proselitismo. Na prática das nossas escolas, a abordagem das chamadas questões de gênero nada mais é do que propaganda feminista e LGBT. E as famílias sabem disso”, observa.
De acordo com Nagib, a ideologia de gênero é uma apresentação reducionista de um debate muito mais profundo, que são as chamadas questões de gênero. “As questões de gênero representam um assunto complexo e controvertido, que é objeto de estudo em áreas como sociologia, psicologia, biologia, medicina, antropologia e literatura. Já a ideologia de gênero é uma versão reducionista de todo esse debate, que vem sendo martelada com objetivos políticos na cabeça de crianças e adolescentes, que não possuem capacidade de assimilar criticamente o assunto, por absoluta falta de conhecimento nessas áreas mencionadas. No fundo, trata-se de uma abordagem ideológica das questões de gênero”.
Por outro lado, o advogado destaca que há falhas na redação de algumas das leis que tentam proibir a abordagem do tema nas escolas. “Ainda assim, é muito claro que o que elas querem proibir é a formatação das mentes dos alunos — e consequentemente das suas atitudes —, segundo os postulados da teoria de gênero. Se o STF houvesse tido um pingo de boa vontade em relação a essas leis, teria dado a elas essa interpretação, e jamais poderia dizer que são inconstitucionais."
A má interpretação poderia impedir qualquer sadio debate de ideias sobre o tema. Na lei 4.268/2015, por exemplo, que trata do Plano Municipal de Educação de Tubarão/SC, é vedada não apenas a expressão “ideologia de gênero”, mas também “gênero” e “orientação sexual ou sinônimos” no currículo escolar e nos materiais de ensino. Em Palmas/TO, a situação é parecida. Na redação da lei 2.243/2016 veda-se “a discussão e a utilização de material didático e paradidático sobre a ideologia ou teoria de gênero, inclusive promoção e condutas, permissão de atos e comportamentos que induzam à referida temática, bem como os assuntos ligados à sexualidade e erotização”.
A própria lei de Nova Gama/GO proíbe materiais com informações sobre ideologia de gênero nas escolas municiais, porém não especifica quais são esses tópicos, abrindo margem para uma interpretação errada, tanto de professores, pais e alunos, quanto do poder judiciário.
Para Nagib, as leis municipais são iniciativas louváveis, mas a melhor solução seria que o Congresso explicitasse o direito dos pais de fiscalizar os professores, como propõe o projeto do Escola sem Partido, impedindo a apresentação de conteúdo de forma dogmática e proselitista.
O que é ideologia de gênero
No senso comum, a palavra “gênero” é um sinônimo mais polido para o sexo biológico, no sentido de diferenciação entre masculino e feminino. Entretanto, para uma corrente ideológica, a palavra traz um significado bastante diferente. Para se ter uma ideia, a Comissão de Direitos Humanos de Nova York, em 2017, passou a reconhecer 31 tipos de gêneros – dentre eles pangênero, andrógeno, sem gênero, transexual e até mesmo “pessoa em experiência transgênera”.
O conjunto de ideias que afirma que ninguém nasce homem ou mulher, mas que cada indivíduo constrói sua própria identidade – ou seja, seu gênero – ao longo da vida, é batizado pelos seus adeptos como “identidade de gênero”. Quem lembra que não há nenhuma comprovação científica de que uma pessoa possa nascer de um sexo biológico e se sentir de outro gênero chama essa corrente de pensamento de “ideologia de gênero”, uma decisão arbitrária fundamentada apenas no sentimento dos indivíduos.
Em novembro de 2017, a Gazeta do Povo publicou, com exclusividade em língua portuguesa, o mais importante estudo sobre ideologia de gênero na medicina: “Disforia de gênero, Condições Médicas e Protocolos de Tratamento”, de Michelle Cretella, médica e presidente do American College of Pediatricians (ACPeds). O estudo aponta para os perigos de mudanças bruscas na compreensão médica sobre o fenômeno da disforia de gênero sem pesquisas sólidas que as recomendem, principalmente ao se tratar de crianças e adolescentes. Segundo o filósofo Ryan Anderson, autor de um livro sobre o tema, "no centro da ideologia está a radical afirmação de que sensações determinam a realidade”. “A partir dessa ideia”, alerta, “surgem demandas extremas para a sociedade lidar com afirmações subjetivas da realidade”.
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