Ouça este conteúdo
O clima polarizado com a proximidade das eleições e os recentes casos de brigas à mão armada, como o que ocorreu em Foz do Iguaçu entre um militante da direita e um da esquerda, reacenderam o debate sobre o porte e a posse de armas no país. A discussão sobre o assunto está sob a responsabilidade do Congresso Nacional.
>> Faça parte do canal de Vida e Cidadania no Telegram
Aprovado na Câmara dos Deputados, o Senado pode votar neste segundo semestre do ano o Projeto de Lei 3.723/2019, que altera as regras de registro, posse e comercialização de armas de fogo para caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). A proposta em discussão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) tem enfrentado resistência entre opositores e conta com mais de 100 emendas a serem analisadas pelo relator, senador Marcos do Val (Podemos-ES).
O projeto estava previsto para ser votado na CCJ no início do ano, mas por falta de acordo e após senadores contrários ao projeto sofrerem ameaças, a votação foi adiada. Em março deste ano, o senador Marcos do Val informou no Plenário do Senado que a Polícia Legislativa havia encontrado dois CACs responsáveis pelas ameaças sofridas por senadores contrários ao projeto.
Após a conclusão das investigações, o relator pediu, em pronunciamento, a votação do texto e disse que os senadores deveriam deixar de lado “paixões ideológicas”, sem criar empecilhos e manobras regimentais para atrasar a votação de projetos importantes.
Em plenário, o senador Marcos do Val, ressaltou que é importante deliberar e não protelar o PL 3.723, não só para o fim a que se propõe, que é dar segurança jurídica aos caçadores e atiradores, mas também à toda a população.
“O projeto vai estabelecer, de forma até mais rígida, com o aumento de penalidades, a disciplina, o regramento da conduta dos CACs e daqueles que, por prerrogativa de função, poderão ter o porte legal de armas, profissionais esses que atuam, direta e indiretamente, com a segurança pública”, disse.
Entenda o PL em discussão no Senado
De autoria do Poder Executivo, o projeto foi aprovado com alterações na Câmara dos Deputados no final de 2019. Entre os pontos mais polêmicos apontados por senadores, está a eliminação da exigência de marcação de munições e a ausência de um limite máximo para aquisição de armas. A proposta em discussão menciona apenas que atiradores desportivos passam a ter direito a adquirir a quantidade mínima de 16 armas de calibre permitido ou restrito, das quais pelo menos seis de calibre restrito.
O texto revoga o artigo do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826, de 2003) que exige a venda de munições em embalagens com código de rastreio e a venda de armas com dispositivo de segurança e identificação, gravada no corpo da arma.
O projeto ainda autoriza os CACs a transportarem uma arma curta municiada e pronta para uso, em qualquer horário, no trajeto entre o local de guarda do equipamento e os locais de treinamento, de prova, de competição, ou de manutenção, de caça ou de abate.
A deliberação sobre os crimes de porte e posse ilegal de armas não constava no projeto original apresentado pelo governo, mas a questão foi abordada pelo substitutivo aprovado pelos deputados federais. A Câmara elevou a pena por posse irregular de arma de fogo de uso para 2 a 4 anos de detenção.
Emendas ao projeto
O projeto já conta com mais de 100 emendas apresentadas pelos senadores. A maioria autorizando o acesso a armas para uma série de categorias profissionais. Na última sessão em que a votação foi adiada, senadores reclamaram das mudanças feitas pelo relator Marcos do Val. O relator, por sua vez, afirmou que tentou acatar ao máximo as sugestões dos colegas para elaborar “um projeto equilibrado e sem radicalismos”.
“O relator transformou o projeto numa verdadeira liberação geral de armas”, criticou o senador Paulo Rocha (PT-PA) na sessão da CCJ.
Dezenas de emendas acolhidas pelo relator autorizam, por exemplo, armas para procuradores estaduais, fiscais do meio ambiente, auditores fiscais agropecuários, agentes de trânsito, guardas municipais, defensores públicos, agentes socioeducativos, policiais de assembleias legislativas, oficiais de justiça, peritos oficiais de natureza criminal, advogados públicos da União, estados e municípios.
Uma das emendas que tem causado polêmica, que precisa ser analisada pelo relator, é a que prevê porte de arma para deputados e senadores. De autoria do senador Marcos Rogério (PL-RO), ele explica que a proposta visa salvaguardar a integridade física de congressistas que possam sofrer “injusta agressão em face da atuação parlamentar”.
A última emenda ao projeto, que aguarda análise do relator, foi apresentada no dia 27 de julho pelo senador Jorginho Melo (PL-SC) e pretende conceder o porte de armas aos vigilantes após o término do seu expediente de trabalho.
Na justificativa, o senador explica que “o vigilante passou por todos os testes, provas e certidões que o habilita e o autoriza para ter o seu porte de armas; por isso, não podemos aceitar que ele seja efetivo apenas durante o seu período de trabalho, cessando ao final do dia”.
Apoiadores do PL apelam por mais defesa e segurança jurídica
Com o aumento do número de armas registradas no país que seguem as regras previstas em decretos presidenciais, defensores do projeto afirmam que o tema precisa estar consolidado em lei, já que grande parte dos decretos sobre armas está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).
As entidades que representam os atiradores e apoiam o projeto, asseguram que mais armas nas mãos de civis não representam um perigo para a sociedade. A Gazeta do Povo entrou em contato com o Movimento ProArmas para saber o posicionamento em relação ao projeto, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.
O senador Lucas Barreto (PSD-AP) informou à Agência Senado que a não aprovação do projeto poderá colocar em risco clubes de atiradores e outras empresas relacionadas ao setor. Segundo o parlamentar, é preciso tirar o debate sobre os CACs da “polarização política” e garantir segurança jurídica a esse grupo, o que levaria a resultados positivos na economia.
“A gente está defendendo o direito do cidadão de bem. A gente tem de fazer que se fiscalize na fronteira para que não se contrabandeiem armas, porque o bandido está lá, armado; ele não passa por controle de munição, de nada”, disse Barreto.
Para o senador Carlos Viana (PSD-MG), o projeto não altera as regras para o porte de armas e nem incentiva sua compra. Segundo ele, a discussão é apenas sobre a questão dos CACs.
Opositores pedem mais controle
Parlamentares que pretendem rejeitar o projeto instalaram em abril a Frente Parlamentar pelo Controle de Armas e Munições, Pela Paz e Pela Vida (FP-Controle) e atuam para impedir o andamento da proposta.
No lançamento da Frente pelo controle das armas, a presidente do movimento, senadora Eliziane Gama (Cidadania-AM), informou que o PL traz preocupação e precisa ser derrubado. Para ela, a frente parlamentar terá a missão de fiscalizar projetos que tramitam no Congresso e decretos do governo que facilitam o acesso a armas.
“É inaceitável se aproveitar de uma regulamentação para promover um ‘liberou geral’ de armas no país. Continuaremos na luta contra as armas. Segurança é dever do governo”, disse.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o senador Paulo Paim (PT/RS) mencionou que vê o projeto com preocupação e defendeu um debate mais aprofundado, para que sejam realizadas todas as alterações necessárias. “Todos os dias vemos notícias de disparo acidental fatal e uso de armas legais em crimes envolvendo cidadãos comuns. Quem mais sofre é a população negra e pobre. Além disso, dados apontam que houve aumento de 84,4% no registro de novas armas em 2021, ante 72,6% em 2018”, disse.
Sobre a possibilidade do projeto ser votado antes das eleições, Paim destacou que acha muito difícil. “As eleições atraem todas as atenções, principalmente, dos parlamentares. A tendência é que o Senado funcione neste período fazendo esforços concentrados, dando prioridade a matérias com prazos, como medidas provisórias, e as que tiverem consenso dos líderes e demais Senadores”, disse.
Um dos opositores ao projeto que também recebeu ameaças no início do ano foi o senador Eduardo Girão (Podemos-CE). Segundo o parlamentar cearense, que defende a posse mas é contra as pessoas andarem armadas nas ruas, o Brasil não tem que facilitar o acesso às armas, mas sim equipar e valorizar as forças policiais.
"Esse PL é um retrocesso na política pública de controle de armas de fogo prevista na legislação atual. Se aprovado, tornaria mais difícil garantir a segurança na nação onde se mata por besteira e com mais homicídios em números absolutos do mundo. As forças policiais sim, deveriam ser valorizadas, capacitadas e andarem equipados também com as melhores armas existentes", disse Girão à Gazeta do Povo.
Preocupado com a polarização e a violência no país, Girão também mencionou que o PL não deve ser pautado na CCJ antes das eleições.
"É uma matéria muito complexa e sensível para a sociedade, por isso, entendo que não há espaço nesse momento para a deliberação sem um debate profundo já que estamos em período eleitoral onde os focos estão dispersos e o próprio Senado trabalhando em um ritmo diferente", explica.
Denúncias enfraquecem a proposta
A falta de controle sobre os tipos de armas que estão nas mãos dos CACs foi alvo de denúncias no início de julho. De acordo com reportagens publicadas por diferentes veículos, o Exército, responsável por esse controle, admitiu em resposta ao Instituto Sou da Paz, via Lei de Acesso à Informação, que há uma falha nos registros. A causa seria a falta de padronização de campos Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), banco de dados que reúne os cadastros de armas adquiridas pelos CACs.
Em audiência na Câmara dos Deputados, o comandante da força, general Freire Gomes, negou problemas no controle. Ele afirmou que quando as armas são desviadas, passam a ser responsabilidade da polícia. E disse que os sistemas do Exército têm auxiliado as polícias nessa questão.
Para Natalia Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, a ampliação do acesso às armas e a diminuição do controle sobre esses armamentos acabam facilitando seu uso pelo crime. “Antes o atirador não conseguia comprar fuzil e hoje o atirador esportivo consegue comprar até 30 fuzis, e isso se torna muito atrativo para o crime organizado”, disse.
Em relação ao projeto em discussão no Senado, Natália vê poucas chances de ser aprovado. Segundo ela, as ameaças aos senadores contrários à proposta foram muito graves.
“É o momento de rever a proposta e acho que tivemos nesse processo uma situação muito grave - senadores contrários receberem ameaças que foram registradas na polícia legislativa. Estamos em um momento que não é propício, tanto o conteúdo como o debate que está sendo conduzido, precisam ser revistos”, explicou.
Cenário político não favorece votação do projeto
Cientistas políticos ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que a polarização política é um dos fatores que devem atrapalhar a votação do projeto sobre as armas no Senado.
“O cenário político não permite um debate com grau de maturidade elevado. É um debate muito sensível, pois tem repercussão sobre muitas áreas. E independente do posicionamento ser contrário ou favorável, é preciso travar o debate com ouvidos abertos. E o cenário atual, a meu ver, não permite que a pessoa esteja disposta a mudar de opinião”, explicou o advogado e cientista político Nauê de Azevedo.
Para Azevedo, as eleições comprometem debates importantes no Congresso e a questão das armas ainda deve ser apontada como uma bandeira eleitoral entre diversos grupos políticos contra ou a favor.
“Tem uma agenda congestionada por conta das eleições, muitos parlamentares estão em campanha e não há tempo para colocar em pauta da forma que precisa ser colocado. É um tema polêmico demais”, disse.
O cientista político Rócio Barreto, diretor da Royal Politics Consultoria e Mkt Político, reforça que em ano eleitoral, dificilmente são aprovados projetos de grande repercussão. Segundo ele, o Senado tem cautela na análise de propostas polêmicas.
“Na Câmara, votam praticamente quase tudo que há de interesse ou que causa comoção. Já o Senado tem uma preocupação maior com essas questões. Então, nesse período eleitoral não haverá a votação. Possivelmente, fique para depois das eleições e mesmo assim, a depender do resultado da eleição”, explicou Barreto.
Por outro lado, Paulo Kramer, doutor em Ciência Política, lembrou que a maioria da população se posicionou a favor do comércio de armas de fogo e munições na época do referendo sobre o Estatuto do Desarmamento, em 2005. Kramer analisa o cenário como “um longo divórcio entre lideranças formadoras de opinião e a massa que tem opiniões divergentes ao projeto”.
“Se os parlamentares representam o povo deveriam estar sintonizados com a vontade da maioria da população - que por esse referendo mostrou ser favorável ao armamento e não ao desarmamento. Agora, se vai ser votado ou não por conta das polêmicas, não dá ainda pra dizer”, disse.
Em um editorial publicado em 2019, a Gazeta do Povo reforçou que o ideal é uma sociedade desarmada com um poder público eficiente no combate ao crime, mas, no cenário brasileiro, alguma possibilidade de acesso às armas para autodefesa precisa existir.
“Nossa opção pelo desarmamento se baseia na convicção de que armar a população não é a solução para os problemas da segurança pública, que exigem ação especializada; de que não existe um direito geral à posse e ao uso de armas; e de que uma sociedade armada, especialmente quando a recente polarização desafia o conceito do brasileiro cordial, é um risco que não gostaríamos de correr”, diz trecho do editorial.