Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Memória

O resgate da vida de Vladimir Kozák

Em uma das suas expedições, Vladimir Kozák posa entre índios do Xingu | Acervo Museu Paranaense
Em uma das suas expedições, Vladimir Kozák posa entre índios do Xingu (Foto: Acervo Museu Paranaense)
Cena de um casamento italiano de 1955 para um estudo sobre a vida na Colônia Santa Felicidade |

1 de 1

Cena de um casamento italiano de 1955 para um estudo sobre a vida na Colônia Santa Felicidade

Em 1974, ao assumir o laboratório de fotografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o fotógrafo Paulo Koehler percebeu que as gavetas de seu novo posto de trabalho estavam abarrotadas de negativos deixados por seu antecessor na função – o checo Vladimir Kozák. Não era assunto para ser resolvido pelas mulheres da limpeza, o que já vinha acontecendo. Embora cumprisse uma função burocrática na UFPR – ele registrava pesquisas de campo dos professores da casa –, Kozák firmara seu nome como cineasta e indigenista, sendo imediatamente associado ao povo xetá, em via de extinção, filmado por ele a partir de 1951, na Serra dos Dourados, Norte do Paraná.

Seu trabalho junto a essa e outras tribos obtivera repercussão internacional, tendo Kozák publicado artigos em revistas americanas, exposto fotos e desenhos de próprio punho no Canadá e incorporado seus filmes ao Museu do Homem, na França. Aquele material esquecido em uma sala do edifício D. Pedro II, ainda que secundário, poderia se somar ao legado do estrangeiro.

Koehler não estava enganado. Salvou dois conjuntos de imagens de irem para o lixo. O primeiro é uma série de fotos da Colônia Witmarsum, em Palmeira, nos Campos Gerais, provavelmente da década de 1950, destinado a um estudo sobre a ocupação dos Campos Gerais. O segundo é o registro de um casamento à italiana, no ano de 1955, feito para um estudo da historiadora Altiva Pilatti Balhana, editado posteriormente em revista acadêmica.

Passados 30 anos, o material foi restaurado por Koehler no sistema fine art e repassado ao Museu Paranaense, no qual estão 44 mil itens do acervo de Kozák, entre objetos pessoais, fotografias e 88 dos fabulosos filmes que produziu, particularmente sobre índios e sobre a cultura popular brasileira. A maior parte do material estava na casa de Kozák, no bairro Uberaba, até 1979, ano de sua morte. Como não tinha herdeiros, o patrimônio ficou sob a custódia do Estado.

Confraria

O que Koehler não podia prever, ao guardar os lotes, era que, nas três décadas que se seguiram, uma espécie de confraria informal se agregaria em torno da memória do cineasta, atraída pela importância da sua obra e pelos mistérios que ainda envolvem sua vida. Não por menos. Impossível não se render à curiosidade diante daquele homem de cultura extraordinária, poliglota, criativo, capaz de passar longas jornadas na mata, dado a gestos grandiosos de amor pelos índios – chegava a fica nu como eles –, mas ao mesmo tempo arredio, espartano, amargo e solitário, próximo de um ermitão.

Cada fato novo em torno dele, ainda que pequeno, causa turbulência. As fotos de Witmarsum e Santa Felicidade são um exemplo. Chamam atenção para um lado menos valorizado da trajetória de Kozák – de funcionário da UFPR –, ainda que tenha passado mais de duas décadas na instituição. "Era uma fotografia documental, bem diferente do que fazia por sua conta, ainda que tenham um toque particular. Ele era uma figura meio marginal na universidade", sugere Koehler. "Em campo, ele contribuía muito, dava sugestões", contrapõe o arqueólogo Igor Chmyz, um dos poucos que conseguiram travar amizade com Kozák.

As divergências indicam que o enigma Vladimir Kozák ainda vai render muitas surpresas, particularmente no que diz respeito ao acervo do Museu Paranaense. Além de um catálogo prometido para este ano, a equipe do museu, sob orientação da antropóloga Maria Fernanda Maranhão, faz a leitura das cerca de 3 mil cartas do cineasta. Fernanda adianta que ele falava pouco de si – destacando um elogio que fez à mãe, mas tratando em geral de assuntos de trabalho. O arqueólogo Oldemar Blasi, primeiro responsável pelo acervo, em 1979, acha que não. "Ele tinha muitas queixas contra o Brasil, a burocracia e tudo mais. Foi um homem amargurado e não escondia." Quanto a Kozák, como se vê, não há consenso.

PerfilO viajante amargurado

Os arqueólogos veteranos da UFPR Oldemar Blasi e Igor Chmyz fizeram expedições com Vladimir Kozák entre os anos 1950 e 1960. À maneira do historiador Edilberto Trevisan, morto em 2010, com folga a fonte mais importante sobre o cineasta checo, Chmyz participou de sua intimidade. Mas foi Blasi, à frente do Museu Paranaense, quem listou o acervo, acomodado às escâncaras na casa em que Kozák vivia no Uberaba, hoje uma biblioteca municipal.

Cada um, a seu modo, guarda parte da biografia desse homem surpreendente – uma fortaleza de 1,90m, voz de trovão em sotaque martelado, temperamento de neurótico de guerra, capaz de perder 20 quilos durante as expedições. Os que não o conheceram, mas que se juntaram ao seu "círculo de confiança", não fogem à regra. Somam dados e perguntas a essa biografia que não se resolve em poucas linhas.

O cineasta Fernando Severo, diretor do Museu da Imagem e do Som, projetou Kozák nacional e internacionalmente com o premiado curta-metragem O mundo perdido de Kozák, lançado em 1988, vencedor de 17 prêmios. Praticamente o apresentou às novas gerações, tornando-se um marco na curiosidade em torno do visitante estrangeiro. A antropóloga Maria Fernanda Maranhão o "descobriu" em 1987 ao abrir uma gaveta no Museu Paranaense. "Estava cheia de documentos", conta. Hoje, a pesquisadora tem acesso às cartas do cineasta e é autoridade no acervo que deixou. Deve-se citar ainda a diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFPR, a antropóloga Márcia Rossato, apontada como a maior estudiosa de Kozák; e a etnóloga Maria da Graça Simão.

Para Blasi, as agruras da Primeira Grande Guerra explicam parte do temperamento e da obsessão de Kozák, que viveu em Curitiba de 1938 a 1979. "Ele me contou ter mergulhado em águas geladas, durante o conflito, para construir uma ponte", lembra o arqueólogo. A decepção com a Europa teria reforçado seu imaginário sobre o "elo perdido" dos índios americanos, cujas histórias o checo cultivava lendo a obra de Karl May.

Práticas

Chmyz – que descreve com detalhes o temperamento e as práticas do cineasta – diz que Kozák pode ser comparado aos enciclopedistas do século 18, mas, em vez de escrever verbetes, fotografava. "Seu impulso estava em documentar. Tinha obsessão por isso. Uma vez, em minha casa, viu na televisão um documentário sobre uma onça. Ficou inquieto. Queria saber como conseguiram fazer aquilo sem serem atacados. Acho que ele ficou no Brasil por causa da exuberância do país. O país o fascinava."

A antropóloga Maria Fernanda percebe Kozák como um legítimo homem do século 19. Ele falava checo, alemão, inglês e português. Escrevia, fotografava, filmava. "Mas penso que ele se via como um ilustrador. Foi ao conhecer ilustrações europeias que se encantou com os índios", pontua a pesquisadora.

Para o fotógrafo Paulo Koehler, Kozák "era um antropólogo sem carteirinha". Sua opinião é baseada em um fato corrente entre os pesquisadores. No afã de registrar o cotidiano dos índios, montava cenas, produzindo materiais e restaurando objetos quebrados, uma de suas habilidades. A prática é reprovável no meio científico. Para o viajante – que previa o desaparecimento das culturas que visitava – não.

Em exposição

"Vladimir Kozák, o olhar de um viajante" e "Um olhar feminino sobre a natureza do Paraná: Karla Kozák".

Local: Museu Paranaense (Rua Kellers, 289, São Francisco)

Quando: de 3ª a 6ª das 9 às 17 horas; sábado e domingo das 11 às 15 horas.

Informações: (41) 3304 3300.

"Vladimir Kozák: fotógrafo".

Local: Memorial de Curitiba (Largo da Ordem).

Quando: até 15 de julho. Horário comercial.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.