O que se convencionou chamar de “ativismo judicial” hoje pode muito bem receber o nome de “ativismo jurídico”, visto que há muito transbordou as fronteiras do poder judiciário, contagiando outras corporações essenciais à justiça, como o ministério público e a defensoria pública.
Esse ativismo caracteriza-se essencialmente por substituir, na fundamentação dos atos judiciais e da atividade daquelas corporações, as razões propriamente jurídicas, colhidas nas leis e nas suas fontes subsidiárias, por razões políticas ou ideológicas. O ativismo jurídico representa uma dupla ameaça: em primeiro lugar, ao cidadão, ao jurisdicionado, que corre o risco de ter seus direitos negados ou diminuídos por motivos de conveniência e oportunidade; mas também ao próprio direito enquanto saber autônomo e expressão particular do conhecimento humano.
Chocante exemplo desse ativismo nos chegou esses dias pelas redes sociais: um parecer de arquivamento de notítia críminis, promovido pelo Ministério Público Federal. Conforme consta do parecer, em julho de 2015, uma mulher indígena deu parte à delegacia policial de Itaituba – PA que seu filho, um adolescente com apenas 16 anos de nascido, foi assassinado por outros dois indígenas, na aldeia Sai Cinza, mediante disparo intencional de arma de fogo. Segundo o relato, a vítima foi morta dentro de casa, a tiros de espingarda, teve seu corpo arrastado até o rio Cabitutu, distante aproximadamente 10km, onde foi esquartejado em pequenos pedaços, retiraram seu fígado e coração, triturando-os, e as demais partes do corpo foram amarradas em uma pedra e jogadas no rio.
Não obstante a crueza do crime, o procurador signatário do parecer votou pelo arquivamento da notítia críminis, deixando impune o delito, com a alegação de que “o adolescente morto, por ser um praticante de magia negra, na interpretação dos líderes indígenas da comunidade, seria o responsável pela morte de outro indígena. Diante disso, foi submetido ao ritual tradicional da ‘pajelança braba’, com a consequente aplicação da pena máxima, que é a morte.” Alegou ainda que a Constituição de 1988 “rompeu com o assimilacionismo” e que seu art. 231 reconhece “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. Invocou também a Convenção 169 da OIT que supostamente disporia sobre o reconhecimento da justiça indígena.
Ora, a alegação de que a Constituição de 1988 tenha “rompido com o assimilacionismo” é puramente ideológica, a levarmos em conta que o seu art. 3º, nos incisos I e III, estabelece como objetivos da República a “construção de uma sociedade livre, justa e solidária” e a “promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Por óbvio, ambos os objetivos não podem ser alcançados com a exclusão ou a segregação dos indígenas, mas apenas mediante a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional.
O signatário do voto de arquivamento parece desconhecer o princípio da unidade da Constituição, tomando o art. 231 fora de seu contexto constitucional. Em direito, texto sem contexto é pretexto. O sentido normativo da Constituição está na Constituição toda e não apenas em uma parte dela. Com efeito, a Constituição “reconhece aos índios sua organização social e seus costumes” (art. 231), mas logicamente em harmonia com as demais disposições constitucionais, entre elas a “inviolabilidade do direito à vida” (art. 5º, caput), a inafastabilidade da jurisdição do Estado nacional brasileiro (art. 5º, XXXV) e a proibição da pena de morte em tempo de paz (art. 5, XLVII, “a”).
A própria Convenção 169 da OIT, tão problemática em face da soberania nacional e da Constituição da República, ressalva expressamente “os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional” quando trata do direito dos índios de conservar seus costumes e instituições próprios (art. 8).
O conceito de “justiça indígena” tampouco existe no direito brasileiro, firmado no princípio constitucional da unidade da jurisdição e na sua tradição romano-canônica, de modo que não há no Brasil direito por estatuto pessoal, salvo em se tratando de estrangeiros nos casos reconhecidos pelo direito internacional privado. O art. 57 do Estatuto do Índio (Lei n. 6.001, de 1973) apenas tolera que grupos tribais, de acordo com suas próprias instituições, apliquem sanções contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibindo expressamente a pena de morte. Não deixa de ser muito bizarro que, em nome do progressismo, se acolha com normalidade a aplicação da pena de morte num menor de idade por crime de bruxaria, como se vivêssemos nos tempos das bruxas de Salém...
O fato é que o referido parecer de arquivamento infringiu expressamente não apenas o art. 57 do Estatuto do Índio, como também seu art. 56, pelo qual a imputabilidade penal do indígena deve ser ajustada segundo o seu grau de integração. Aliás, os autores do fato parecem bem integrados, visto que o uso de armas de fogo para matar alguém não é peculiar à cultura indígena. Até onde se sabe, as armas de fogo foram introduzidas no Brasil e em todo o continente americano no século XVI pelos homens brancos europeus, que tinham recentemente descoberto a pólvora.
O ativismo jurídico é a submissão do direito a ideologias e sabemos que ideologias são instrumentos de dominação. O antropólogo Diogo de Oliveira, num dos melhores artigos que já pude ler sobre a questão indígena no Brasil (O Brasil não começou em 1988: o caso Xokleng, o julgamento do “marco temporal” e o neocolonialismo do século XXI), ressalta que poderosos interesses internacionais instrumentalizam a questão indígena e ambiental num sentido que em nada favorece o povo brasileiro e em particular os próprios indígenas.
Nesse contexto, as ideologias do identitarismo e do multiculturalismo, que se propõem veicular demandas de determinados grupos sociais contra o bem comum e o interesse nacional, aparecem como máscaras de forças externas interessadas em fragmentar a Nação para melhor dominá-la, em mais uma aplicação maquiavélica do princípio “divide ut regnes”. Aqui é oportuna a observação do cientista político Felipe Quintas, quando aponta que o identitarismo conduz à despersonificação do indivíduo humano, sendo que os primeiros prejudicados são os membros das ditas minorias que essa ideologia se propõe a defender: despersonalização não apenas no sentido simbólico, pela negação de sua personalidade idiossincrática, mas no próprio sentido físico, como o adolescente indígena deste caso, cuja família continua sem satisfação jurídica do Estado brasileiro.
* Rodrigo Pedroso é advogado graduado pela FD/USP, mestre em filosofia pela FFLCH/USP, procurador da Universidade de São Paulo (licenciado) e assessor especial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
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