A jovem Kelli Meire Tomaz mora na Vila das Torres e estuda no Prado Velho. A advogada Marta Tonin dirige uma faculdade no Portão. A pesquisadora Araci Asinelli leciona no Centro. O educador Fernando Góis vive na zona rural de Mandirituba. E a assistente social Graciela Dreschsel trabalha no Campo Comprido.
Essas pessoas de idades e escolaridades diferentes têm em comum um documento assinado há exatos 20 anos o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA , pelo qual se identificariam em qualquer parte do planeta. Não se trata de uma marca de nascença, como parece. Mas arrisca ser mais forte do que isso. Há quem faça do estatuto uma religião, uma ideologia, um sentido para a vida, um estímulo intelectual.
Não importa o grau e a intensidade. O fato é que essa gente forma uma rede. Não uma rede frágil como as construídas nas comunidades virtuais, mas uma corrente que garantiu o maior avanço social brasileiro de que se tem notícia. Nasceu de um parceria entre o poder público e o cidadão comum. E suas vantagens são muitas. O ECA é capaz de aproximar dois professores de Educação Física que não se conhecem a secretária de Estado da Criança e da Juventude Thelma Alves de Oliveira, 55, e o pesquisador Felipe Gonçalves, 29. Mas principalmente garantir que nos bairros em que um e outro circulam ela no Batel e ele no Sítio Cercado nenhum abuso à infância será cometido debaixo de seus olhos. A ação se estende da rua para o bairro, e assim por diante.
Parece pouco? Não é. O efeito é de um formigueiro. É praticamente impossível mensurar a quantidade de profissionais e de voluntários que se engajaram na consolidação do ECA. Há os quantificáveis conselheiros tutelares, promotores, funcionários de varas. Mas não há como saber quantos, neste momento, estão abordando uma criança em situação de risco, denunciando maus-tratos, publicando um blog ou orientando uma tarefa acadêmica com foco na juventude.
É de festejar. No período anterior a 1990, quando o estatuto ainda era uma utopia, a população se via pega de assalto diante do problema da marginalização adolescente e do abandono infantil. São muitos os registros sobre a confusão federal que reinava naqueles tempos. Hoje, embora ainda existam barreiras gravíssimas a vencer (veja quadro) ninguém que se diga ligado ao ECA deixa para mais tarde. A doutrina da proteção integral com folga o motor do estatuto se tornou uma lição simples e aplicável mesmo em condições adversas. Melhor não duvidar.
A reportagem da Gazeta do Povo entrevistou dez personalidades do ECA e, saibam, cometeu uma injustiça: não estão aqui o coronel da PM Roberson Bondaruk, o padre Patrick McGillicuddy, a ex-conselheira Jussara Gouveia, o.... Desfalcada, essa matéria começa pelo procurador Olympio de Sá Sotto Maior um dos redatores do ECA , passa pela especialista em projetos Paula Baena e culmina em Kelli Meire, recém-chegada às praias do estatuto.
As histórias se repetem: para cada um houve o momento do chamado para atuar prol da infância e a adesão, o que significa mudar de emprego e de conversa. Juntos, esses relatos dariam um roteiro de longa-metragem. Por um simples motivo: nasceram do choque da realidade brasileira e ensinam que a tal da ação transformadora não é assunto de comitê.
A advogada Marta Tonin ajudou a implantar na Ordem dos Advogados do Brasil uma comissão para debater questões ligadas à infância e juventude. Como representante da OAB no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, visitou centros de socioeducação e conheceu a realidade dos jovens em conflito com a lei. "Certa vez fomos a um centro em Tatuapé, São Paulo, onde tinha ocorrido uma rebelião. Foi uma das cenas mais chocantes da minha vida", conta.
O impacto é de regra. Foi assim com Maria Madalena de Meira, 45 anos, conselheira tutelar da Regional Portão. Na década de 80, Maria andava "em cima do salto e embaixo da seda", como diz. Trabalhava numa multinacional, o que não impediu, de certa feita, aceitar fazer um giro com um grupo que abordava crianças empobrecidas. Foi caminho sem volta. Deu baixa na carteira, alistou-se no Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua e inscreveu seu nome entre os que ajudaram o ECA a sair do papel.
Na época em que Maria disse adeus às sedas, a secretária Thelma era já uma veterana das passeatas e resistência à ditadura inclusive para salvar o marido encrencado com a repressão. É capaz de descrever cada passo do estatuto como se mostrasse o álbum de retratos de seus filhos. A militância bruta, contudo, não a eximiu de um traço comum à turma do ECA: o de fazer vínculos reais com as crianças.
Durante três anos, Thelma lecionou na Escola Municipal Vila Nossa Senhora da Luz, o Grupão, plantado numa das áreas mais estigmatizadas de Curitiba no período. Arrisca que metade dos 20 mil moradores da vila fosse menor de 18 anos. Thelma demorava três horas para chegar lá, mas fez ali o laboratório de atuação que a lançaria no futuro.
Foi assim com quase todos os agentes do ECA. Como não havia antecedentes de atuação, aprendeu-se fazendo, a fórceps, debulhando cada um dos 200 e tantos artigos do documento. Era preciso. Como lembra o procurador-geral de Justiça do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior, a situação era tão grave que nas delegacias de Curitiba havia o João Caceteiro. "Todas as noites ele passava nas celas e espancava os meninos para que dormissem. Interditamos o local", conta um dos responsáveis por defender no Congresso Nacional o texto-base do estatuto.
Um dos casos mais notáveis de aprendizado pela pedra é o do ex-frade carmelita Fernando Góis, 52 anos, criador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, em Mandirituba. Nos idos de 80, era adepto da Teologia da Libertação e não se conformava em viver atrás dos muros do convento: queria estar junto aos pobres e à maneira deles. Não ficou na vontade. Parte de seu projeto de resgate à infância nasceu embaixo das marquises onde dormiu, com gangues e desvalidos. Hoje, faltam-lhe dados nas mãos para contar quantos daqueles garotos estão casados, empregados e com filhos. "Espero o dia em que lugares como a chácara não serão mais necessários", diz Fernando, que tem sob suas asas 80 crianças e adolescentes.
Enquanto o dia esperado por Fernando não chega, há de se trabalhar feito um estivador. Paula Baena tem seu nome ligado a 30 projetos. Falar no ECA, no Paraná, é referir-se à sua ciência no ramo. A professora do Departamento de Educação da UFPR, Araci Asinelli da Luz, 60, idem. Alia pesquisa com suor. Seu engajamento intelectual ao ECA é braçal. Divide-se em tantas ações e projetos que ao lado do procurador Olympio e da advogada Marta Tonin garante que o estatuto fique sempre sob o sol. Eles o fazem nos jornais, nas salas de aula, nas tribunas. "Não quero mais ter de lutar pelo óbvio. Quero ver os direitos da pessoa humana incorporados e efetivados na Constituição", diz Araci que foi cooptada pela causa da infância ao se dispor a assessorar um grupo de educadores de rua.
A aula já dura três décadas. O ECA tem dessas coisas.