Um dos grandes desafios atuais tanto para governantes quanto para a população é definir em que tipo de cidade se quer viver. Para a opção por lugares mais agradáveis e com mais qualidade de vida, especialistas defendem uma quebra de paradigma, com o desenvolvimento urbano orientado pelo transporte (TOD, na sigla em inglês). O tema foi discutido durante a 16.ª Etransport, realizada no início de novembro no Rio de Janeiro.
Para o professor e pesquisador Robert Cervero, da Universidade de Berkeley (EUA), um dos problemas enfrentados atualmente é a dependência do transporte individual, principalmente dos carros. "O carro é uma invenção maravilhosa, mas traz muitos custos sociais, econômicos e ambientais. A dependência do carro afeta a qualidade de vida de quem vive nas cidades e o grande desafio é ter lugares mais agradáveis para se viver", comenta.
Cervero defende um modelo de mudança que alia a densidade, optando por cidades mais compactas; com diversidade de atividades, variação do uso do solo e desenhadas para serem amigáveis aos pedestres. Isso não seria nenhuma revolução: é voltar ao conceito de centenas de anos, de cidades menores, compactadas e que se desenvolviam no entorno de estações de transporte. "É um apelo pelo uso racional do carro. Você não precisa dele para ir à mercearia, pode usar bicicleta ou transporte coletivo."
Dinâmicas
Mudar as dinâmicas nas cidades passa, necessariamente, pelo planejamento de governo e aceitação da opinião pública, defende o secretário geral da Associação Internacional de Transporte Público (UITP, na sigla em inglês), Alain Flausch. "Se a gente tem cidades melhores que outras em termos de mobilidade é porque elas começaram a pensar nisso primeiro. Eu acredito que se os cidadãos considerarem a mobilidade como a primeira questão, seus governantes vão entender isso e agir para melhorar."
Flausch lembra do exemplo de Bogotá, na Colômbia, que foi desenhada para o carro e agora restringe o seu uso e incentiva a adesão ao transporte público, com uma rede eficiente de BRT e integração com bicicletas, além de projetos futuros de metrô. "Precisamos de cidades calmas e pacíficas para as pessoas, precisamos voltar a andar nas cidades", diz.
A diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento no Brasil (ITDP, na sigla em inglês), Clarisse Linke, afirma que no Brasil há quatro desafios para a adoção desse modelo. O primeiro é intensificar o uso do solo em áreas centrais subutilizadas, ao invés de expandir as cidades. O segundo é um diálogo mais próximo entre as áreas de planejamento e urbanismo e transporte nos municípios.
Em seguida, há a questão do financiamento. "Há vários mecanismos no Estatuto das Cidades que poderiam captar recursos no entorno de áreas em que houve investimento do poder público para ser reinvestido no local que nem são regulamentados", pondera. Por fim, ela cita o problema da qualidade técnica: há um grande volume de recursos para infraestrutura, mas falta mão de obra, parâmetros técnicos e padrão de qualidade na execução.
Dependência do automóvel precisa acabar
O modelo que prega o desenvolvimento urbano por meio do transporte não é contra os carros, mas lembra que a dependência do transporte individual precisa acabar. Para Alain Flausch, da UITP, grande parte dos países está ficando com cidades cada vez maiores e problemas maiores também. "Fico surpreso ao ver que 35 anos depois da instalação, as indústrias automobilísticas continuem a receber tanto investimento dos governos. Entendo que há a preocupação com a manutenção dos empregos, mas não é possível continuar enfileirando carros", argumenta.
Frota
No Brasil, entre outubro de 2004 e 2014, a frota de veículos cresceu 121,4%: passou de 38,7 milhões para 85,7 milhões, de acordo com dados do Denatran. Nessa conta, a quantidade de automóveis quase dobrou: de 24,6 milhões em 2004 para 47,4 em 2014, um crescimento de 92,3%. Esse crescimento também ocorreu nas cidades: em Curitiba, em uma década o número de automóveis aumentou 64% e a cidade possui um dos mais altos índices de motorização do país.
Lélis Teixeira, presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), lembra que o Rio de Janeiro está quebrando esse paradigma ao mudar a zona portuária, acabando com uma via para carros importante na cidade em busca de melhor urbanização do espaço. Para Flausch, essa é uma escolha fantástica. "Vai mudar a vida da cidade. O mesmo ocorre em São Paulo, a partir de esforços extraordinários, as coisas estão mudando em uma direção correta, mas ainda há muito o que fazer", diz ao comentar a opção da atual administração pela priorização do transporte coletivo e bicicleta.
Curitiba
Em Curitiba, novas ações nesse sentido foram tomadas em 2014, com a criação da Via Calma na Avenida Sete de Setembro, que preza pelo compartilhamento do tráfego dando preferência para pedestres e ciclistas, e a faixa exclusiva para ônibus em um trecho da Rua XV de Novembro. (FT)
A repórter viajou a convite da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor)