Longas jornadas levando bois para o interior
Em sua casa, batizada de Rancho do Tropeiro Velho, Otávio dos Reis conta que após a última viagem ele começou a vender cavalos pelas regiões Sul e Central do Paraná, passando por Guarapuava e Palmas. Aos 33 anos, mudou-se para uma fazenda de Jacarezinho, no Norte Velho, onde foi capataz e conduziu algumas boiadas. "Mas eram viagens pequenas."
No entanto, o sangue tropeiro continuava pulsando forte. Otávio tornou-se de fato boiadeiro, conduzindo bois do Paraná até o sul de São Paulo e Mato Grosso do Sul. "Tropeiro e boiadeiro são duas categorias diferentes. Tropeiros vinham do Rio Grande do Sul até São Paulo carregando mulas", ressalta.
As viagens eram longas e com até 200 bois. Para atravessar o Rio Paraná, era necessário colocar o gado em uma balsa. "Todo o processo para colocar e tirar os bois e atravessar o rio levava perto de duas horas", relata.
Caminhos
Pedágios cobravam por mulas e cavalos e faziam viajantes desviarem
Otávio Reis, o centenário ex-tropeiro de uma família de origem portuguesa que contava 12 filhos, lembra que uma prática muito comum era realizar rotas em zigue-zague para driblar os pedágios aplicados pelo governo da época. "Para atravessar com as tropas a gente tinha que pagar os postos de registro. Muitas tropas faziam caminho diferente para não precisar pagar", conta ele.
Os primeiros a pagar taxas a fim de obter autorização para percorrer o Paraná no lombo dos muares foram exatamente os tropeiros. Isso porque o reino português só autorizaria a abertura da Rota dos Tropeiros a partir de 1730 se tivesse lucro. Estabeleceram-se, então, postos de registros ao longo do Caminho de Viamão, que ligava o Rio Grande do Sul à paulista Sorocaba. Ao menos três pontos realizavam a cobrança: no Rio Pelotas (entre Santa Catarina e o Rio Grande), nas margens do Rio Iguaçu (perto de Curitiba) e em Sorocaba. Os valores eram basicamente de 2,5 mil réis por muar e 2 mil por cavalo.
Ainda menino, Otávio dos Reis se encantou com o mundo tropeiro. A fazenda onde morava em Porto Amazonas, nos Campos Gerais, servia como pouso de tropas. Ver todos aqueles homens tomando chimarrão e conversando ao redor de mulas e cavalos mexia com a imaginação de Otávio.
A vontade era tanta que um tropeiro chamado Aparício tentou convencer o pai, Olímpio, a permitir que o garoto seguisse estrada afora. Mas ele era "muito menino" para isso. Aborrecido, Otávio pensou que seu sonho jamais se tornaria realidade. O desânimo foi tanto que seu pai chamou o tropeiro Afonso Antônio Ferreira, casado com uma das irmãs de Otávio, para conversar e permitiu que o filho viajasse com as tropas. Com apenas 14 anos, em 1928, ele deu os primeiros passos em um mundo tomado por muares (mulas), chimarrão, poncho e chapéu.
Hoje, centenário, Otávio é um dos últimos tropeiros vivos que percorreu a tradicional rota entre Viamão, no Rio Grande do Sul, e Sorocaba, no interior paulista. Ele foi o caçula da tropa que trouxe das terras gaúchas cerca de 600 muares para serem comercializados no estado paulista. Foram três meses de viagem em pleno inverno. "Não tinha levado muita roupa. O frio era muito forte. Durante as noites dormidas nos acampamentos, os demais faziam a cama em volta da minha para me aquecer."
A primeira das cinco viagens que realizou de Viamão a Sorocaba foi inesquecível. Logo na primeira vez, recebeu a missão de ser o madrinheiro da tropa. Ele conduzia o cavalo que ia à frente com o cincerro (uma espécie de sino) batendo para orientar a tropa. "As mulas obedeciam ao barulho do sino e me seguiam." A missão foi tão bem feita que nas outras empreitadas ele continuou no posto.
Propina e fim do ciclo
Ao longo das viagens, o único local fechado em que as tropas dormiam geralmente era uma fazenda em Ponta Grossa. Quando pernoitavam nos acampamentos era crucial manter um peão acordado. "Havia pontos em que os índios nos roubavam enquanto dormíamos. Tinha que manter um fogo alto e bem aceso", recorda Otávio.
Em um dos pontos um "índio velho" cobrava 2 mil réis para deixar as tropas em paz. "Se a gente não pagava, ele dava um assobio alto e os demais já vinham nos amedrontar." Para comer, levavam uma cumbuca cheia de paçoca mistura de carne seca com farinha de mandioca. "Em outros pontos, a gente comia em fazendas. Mas tinha que pagar", relata.
As tropas ficavam paradas em um mesmo local por 15 dias "porque as mulas não aguentavam". "A gente também vendia mulas no meio do caminho, como em Ponta Grossa."
Aos 21 anos, em 1935, Otávio fez sua quinta e última viagem como tropeiro. O comércio de muares em São Paulo já chegava ao fim. Mas como o rapaz parecia ter nascido em cima de um cavalo, continuou conduzindo bois para Mato Grosso Sul e São Paulo até perto dos 70 anos.
Tropeirismo teve quase dois séculos de força econômica
O historiador Arnoldo Monteiro Bach, autor do livro "Tropeiros", explica que a última Feira de Sorocaba ocorreu em abril de 1897, conforme noticiou o jornal 15 de Novembro de Sorocaba: "Esteve muito animada este ano (1897) a tradicional feira de bestas desta cidade". No entanto, o comércio de muares continuou até a década de 30. "O muar era o motor da economia brasileira. Quem adquiria um muar tinha um patrimônio, tamanha sua utilidade", ressalta.
O movimento tropeiro, que começou por volta de 1730, teve seu ápice em 1897. Depois disso o volume de tropas se reduziu, mantendo certa frequência até 1915 e rareando cada vez mais com o passar dos tempos. O caminho Viamão-Sorocaba era a principal rota do tropeirismo.
Bach conta que as mulas eram usadas até como tração de bondes. "Em 1900, a Companhia de Bondes São Cristóvão, do Rio de Janeiro, que atendia a Zona Norte, com 60 quilômetros de extensão de linhas, contava com 150 bondes de diversos tipos, 2 mil animais e 600 empregados." Com o surgimento dos motores a diesel, os muares perderam terreno para os equipamentos motorizados.
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