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“A pessoa que pede para morrer não quer exatamente morrer; quer que lhe tirem a dor. Paciente muito bem tratado não vai buscar a morte, mas o paciente com dor é levado, pelo desespero, a pedir coisas que não pediria se não tivesse dor" | Hedeson Alves/Gazeta do Povo
“A pessoa que pede para morrer não quer exatamente morrer; quer que lhe tirem a dor. Paciente muito bem tratado não vai buscar a morte, mas o paciente com dor é levado, pelo desespero, a pedir coisas que não pediria se não tivesse dor"| Foto: Hedeson Alves/Gazeta do Povo

Na época em que imperadores romanos perseguiam cristãos, os mártires, que aceitavam o sofrimento em nome da fé, eram admirados, mas os bispos avisavam: ninguém devia se entregar voluntariamente às autoridades romanas buscando o martírio. Da mesma forma, o oncologista Cícero Urban acredita que a dor e o sofrimento, quando são ativamente buscados pela pessoa, não têm valor sobrenatural. Por outro lado, quando alguém é atingido por uma situação como uma doença ou uma tragédia, pode aproveitar a oportunidade para rever seus valores e buscar superação. Aí, sim, a dor e o sofrimento têm valor – e Urban fala com a experiência de quem também já foi paciente de câncer. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Medicina da Uni­versidade Positivo, com pós em Bioética pela Universidade do Sagrado Coração, em Roma, e vice-presidente do Instituto Ciência e Fé, Urban falou à Gazeta do Povo sobre alguns dos temas de uma palestra que ele dará no próximo sábado, em Curitiba.

Por que falar sobre a dor e o sofrimento?

Acho que em primeiro lugar só precisamos fazer algumas definições. Quando falo em "dor", me refiro à dor física, e hoje não há dor que não possa ser tratada. Já o sofrimento é diferente, é mais profundo. O que me motivou a falar desse assunto foi um artigo recente de um oncologista italiano, Umberto Veronese, para quem a dor e o sofrimento, na verdade, afastam de Deus. Mas ele é ateu, e não creio que a questão deva ser vista dessa forma extrema. A dor e o sofrimento não afastam de Deus, mas também acho que, quando são algo procurado, não aproximam de Deus, não são instrumentos de redenção. Eles não são necessários, embora seja inevitável que nos atinjam em algum ponto de nossas vidas; mas não creio que tenham de ser buscados. Posso dizer isso como médico e também como paciente.

Como foi sua experiência de paciente?

Há três anos fiz uma duodenopancreatectomia – uma retirada quase total do pâncreas por causa de um tumor que havia na cabeça do órgão. Eu sempre falei sobre a terminalidade, dei aulas sobre o manejo do paciente terminal, e escolhi a oncologia no começo da carreira justamente porque era meu desejo lidar com cuidados paliativos na fase avançada da doença. Medo de morrer todos temos, mas, por causa da minha experiência profissional, não posso dizer que estava sendo pego de surpresa. Eu não acho que estivesse aterrorizado com a possibilidade de morrer; o que me preocupou na descoberta foi a questão do sofrimento. Ainda assim, em momento algum eu observei que a doença fosse um instrumento para minha salvação, que eu estivesse sendo purgado dos meus pecados e pudesse ir ao céu por estar passando por aquilo. Se eu tivesse de morrer e ir para o céu naquele mo­­­mento, seria pela pessoa que fui e pelo bem que fiz ao longo da vida, e não pelo tempo de agonia causada pelo câncer.

Como a doença influenciou seu modo de ver a vida?

Em primeiro lugar, acho que fiquei mais sereno, no sentido de lutar pelo que realmente pode ser mudado; de não me preocupar tanto com o que vem pela frente e com o que ficou para trás, mas lidar com o tempo presente, que é o que temos de concreto. Não falo de aproveitar a vida no sentido hedonista, de buscar o prazer desenfreado, mas no sentido de observar que somos vulneráveis e frágeis, e que não vale a pena se preocupar demais com interesses secundários. Depois, veio a questão da excelência: a vida é muito curta para sermos medíocres e pequenos, temos de buscar a excelência em tudo que fazemos.

O câncer alterou sua espiritualidade?

A espiritualidade é uma vivência individual. Em momento nenhum perdi a fé, achei que Deus estava querendo me causar problemas, ou que Ele não existisse. Seria muita pretensão da minha parte pensar algo assim. O que fiz foi me questionar sobre o que tinha feito como pessoa, e percebi que, quando alguém se depara com a possibilidade real e objetiva de morte, começa a buscar algum sentido para a existência. Aí, sim, a dor e o sofrimento servem como instrumento para que busquemos esse sentido, mas eles, por si só, não são a redenção. Eu me perguntei o que fiz da própria vida, se deixaria mais coisas positivas ou negativas, como minha filha veria seu pai no futuro, se eu deixei o meio onde vivi melhor do que estava quando eu cheguei. Quando percebemos nossa fragilidade vemos que a felicidade não vem dos bens materiais. Rubem Alves diz que a saúde faz os sentidos dormirem e a dor os desperta, e acho que ele tem razão. Todo dia, quando acordo, a primeira coisa que penso é "que bom que não estou com dor, posso comer, posso trabalhar", porque durante parte da minha vida eu fui privado disso.

É frequente que os pacientes se perguntem o porquê da situação pela qual passam?

Todo paciente faz esse questionamento, e comigo não foi diferente. Eu estava em uma das fases mais felizes da minha vida, com 35 anos, carreira em ascensão, uma filha com 5 meses, tudo estava bem. E, de repente, um diagnóstico muda completamente minha perspectiva de vida. É frequente que as pessoas se revoltem em situações assim. Mas a maior parte dos pacientes, com tratamento e apoio adequados, acaba superando. E aí voltamos àquela distinção entre dor e sofrimento. Como médico, posso aliviar a dor e, quando possível, dar elementos para o paciente superar a doença. Mas não somos capazes de dar um sentido ao sofrimento dos outros. Essa é uma angústia que o médico carrega, e por isso há profissionais que evitam lidar com isso. É muito mais fácil tomar uma decisão sobre um procedimento cirúrgico complexo, como um transplante, do que ficar ao lado de um paciente terminal que não é mais possível curar.

Você é uma pessoa de fé, mas também um pesquisador, que conhece os mecanismos biológicos que provocam um câncer. Algumas pessoas veem nos desastres pessoais, como doenças, e em desastres naturais, como terremotos, "mensagens" divinas. E você?

Não sou teólogo, mas para mim achar que Deus pune assim as pessoas é fazer uma interpretação errada das Escrituras. O sofrimento e a dor fazem parte da vida humana. Não acho que sejam uma punição aos pecados, até porque seriam um instrumento tosco. Além disso, se eu visse a dor e o sofrimento como instrumento de redenção, a minha profissão perderia o sentido, pois nós curamos a doença, afastamos o sofrimento e a dor. Se houvesse mérito em buscar o sofrimento e a dor, não teríamos tantos santos médicos.

O debate sobre a eutanásia voltou com força quando um jornalista britânico confessou ter provocado a morte de seu parceiro soropositivo. Qual a sua opinião sobre a eutanásia?

Na nossa vivência, o pedido pra morrer é um pedido de socorro de alguém que não recebeu todo o apoio necessário, especialmente do ponto de vista psicológico. Acho que a pessoa que faz um pedido desses não quer exatamente morrer; quer que lhe tirem a dor. Paciente muito bem tratado não vai buscar a morte, mas o paciente com dor é levado, pelo desespero, a pedir coisas que não pediria se não tivesse dor.

Qual é, então, seu conceito de morte digna?

É a ortotanásia. Ela é diferente da eutanásia, é a morte no tempo certo. É um paciente que está em uma situação sem perspectiva poder ir pra casa, ficar com sua família e suas coisas, e não em uma estrutura despersonalizante. UTI é lugar para se salvar vidas, não para morrer. Felizmente os médicos e as famílias estão se tornando mais sensíveis para essa realidade. Eles estão compreendendo que, se um paciente tem uma doença crônica, sem chances de cura, prolongar artificialmente a vida só vai trazer mais sofrimento. A sociedade e os próprios médicos estão percebendo que a medicina não pode tudo, e a ortotanásia é o reconhecimento desse limite. O Papa João Paulo II é um exemplo. Estava doente, e mesmo assim continuava suas viagens – ele usou a dor e o sofrimento como instrumento de superação, e nisso eu vejo valor porque isso, sim, aproxima de Deus. Mas, quando finalmente se constatou que não havia mais nada a fazer, decidiu morrer em casa. Quer maior exemplo que esse?

Serviço:

A palestra do Dr. Cícero Urban ocorre no dia 27, às 8h30, no Instituto Salette (Rua Lange de Morretes, 889, Jardim Social). Vagas limitadas. Inscrições pelo e-mail aroldo@cienciaefe.org.br e pelo telefone 3243-2530.

Leia mais

A íntegra da entrevista do dr. Cícero Urban está no blog Tubo de Ensaio, sobre ciência e religião (www.gazetadopovo.com.br/blog/tubodeensaio)

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