A Gazeta do Povo questionou a OAB Nacional a respeito das denúncias feitas pelos advogados de Filipe Martins e dos presos do 8 de janeiro, mas a entidade não se manifestou| Foto: Foto: Divulgação/OAB e Reprodução/Instagram
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A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) está calada diante das denúncias de cerceamento de defesa no caso do ex-assessor Filipe Martins e em processos dos presos do 8 de janeiro. Entre as violações relatadas pela classe estão dificuldades de acesso aos processos, desconsideração de provas legítimas e falta de diálogo com o Ministério Público (MP) e com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. A Gazeta do Povo procurou a OAB para se posicionar a respeito, mas o órgão não atendeu a reportagem.

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De acordo com o desembargador aposentado Sebastião Coelho, o que tem ocorrido é um desrespeito à prática da advocacia com violações constantes às prerrogativas dos advogados e ao devido processo legal. “A prisão de Filipe Martins é um ato de covardia. Não tem palavra mais suave para dizê-lo”, afirmou, ao tratar do caso em suas redes sociais.

“Em mais de 42 anos na área jurídica como advogado e juiz, essa é a prisão mais abjeta que já vi, sob a responsabilidade de um juiz que não respeita a Constituição e o regramento jurídico do país”, afirmou o desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT).

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“Em mais de 42 anos na área jurídica como advogado e juiz, essa é a prisão mais abjeta que já vi"

Desembargador aposentado, Sebastião Coelho

De acordo com o desembargador, o Estatuto da OAB determina em seu artigo 6º que deve existir respeito mútuo entre advogados, juízes, promotores e demais envolvidos no processo, estabelecendo que "as autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho", diz o texto.

“Agora vejam, quando um juiz ou ministro nega uma audiência para um advogado, ele está respeitando esse advogado?”, questiona o desembargador. “E quando a Procuradoria-Geral da República (PGR) nega duas vezes reunião com os advogados, estão nos respeitando? Não estão”, aponta o desembargador, que é especialista em Direito Penal, criticando ações do MP e do ministro Alexandre de Moraes no caso do ex-assessor Filipe Martins, preso por uma viagem que nunca existiu.

“Até hoje não tivemos nem acesso à íntegra das provas que fundamentam o procedimento, e nos negaram audiência com o ministro relator ou assessor designado”, continua o advogado Ricardo Scheiffer, informando que Martins segue preso há cinco meses sem denúncia, com parecer da PGR favorável à soltura, e sem qualquer manifestação da OAB a respeito.

De acordo com o advogado, Moraes tem mantido a prisão do ex-assessor diante de uma “situação de dúvida” e, para corrigir essa “incerteza”, o ministro aceita apenas provas da Polícia Federal (PF), ignorando o que foi protocolado pela defesa, como passagens do voo que Martins realizou no dia seguinte para Curitiba, ofício da companhia aérea Latam, fotos tiradas no estado do Paraná e registros de Ifood e Uber utilizados no período.

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“[Martins] simplesmente, não saiu do Brasil. Tal obviedade, porém, sempre que é provada, uma vez e outra nesses autos, é objeto de novas diligências”, apontam os advogados, ao comentarem que até mesmo a lista oficial de passageiros do voo presidencial, obtida por meio da Lei de Acesso à Informação na gestão do presidente Lula, foi desprezada.

Wall Street Journal divulga erro alfandegário usado por Moraes para manter a prisão

A defesa denunciou ainda que Filipe “foi coagido a fazer prova contra si mesmo”, já que obteve resposta do Sistema de Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos — U.S. Customs and Border Protection (CPB) — sobre inexistência de registro de entrada física em seu nome na cidade de Orlando em dezembro de 2022. No entanto, a informação também não foi aceita por Moraes sob argumento de ter sido “solicitada pelo próprio acusado”.

O ministro exigiu, então, “consentimento do investigado” para que a PF tivesse acesso aos dados diretamente no CPB dos Estados Unidos, onde, alguns dias após o pedido de Moraes, foi localizado um erro de sistema. Segundo o jornal norte-americano Wall Street Journal (WSJ), a situação seria uma maneira de “fornecer convenientemente a narrativa necessária para a prisão [de Martins]”.

De acordo com o artigo publicado pelo WSJ, o CBP removeu parte do engano, admitindo implicitamente que algo estava errado. No entanto, a decisão do ministro continua se apoiando em uma seção separada, ainda a ser corrigida.

“O que diabos está acontecendo no CBP em Orlando?”, questiona a publicação da colunista Mary Anastasia O'Grady, ao pontuar que “o equívoco no registro de viagem está sendo usado para violar as liberdades civis do senhor Martins no Brasil” e que “seria bom saber como isso aconteceu e por que a agência está tão relutante em corrigir as coisas”.

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“Seria bom saber como isso aconteceu e por que a agência está tão relutante em corrigir as coisas”.

Colunista Mary Anastasia O'Grady, do Wall Street Journal

Além disso, a defesa de Martins aponta que Martins tem sido “obrigado a provar que não fez o que não fez, uma das exigências mais cruéis que podem ser realizadas a uma pessoa presa”, asseguram os advogados. “Em outros tempos (recentes), o STF chegou a chamar de ‘tortura’ e de ‘pau de arara do século XXI’ a prisão preventiva que, sem elementos, buscava colher provas a partir da própria prisão”, continuam, questionando o silêncio da OAB diante de tantas ilegalidades.

Advogados dos presos do 8/1 também denunciam abusos e pedem auxílio à OAB

Segundo o advogado Helio Junior, que atende mais de 100 presos do 8 de janeiro, as garantias estabelecidas pela Constituição Federal para preservar o Estado Democrático de Direito também estão sendo negligenciadas nos processos relacionados ao 8/1, e a situação preocupa ainda mais por ocorrer no contexto do STF, devido ao caráter definitivo e à repercussão das decisões da Corte.

“Em observância ao princípio da ampla defesa e ao direito de defesa técnica, é imperativo assegurar que os advogados possam realizar sustentações orais”, declara. O advogado apresentou requerimento ao Conselho Federal da OAB, em 6 de março de 2024, solicitando alguma ação da entidade junto ao STF para que a Corte respeite esse direito aos seus clientes, e não obteve resposta.

A OAB anunciou no mês seguinte que levaria ao Congresso uma proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre o tema. O ofício com a sugestão foi entregue ao presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, mas aguarda tramitação.

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Hélio Junior reitera que os presos do 8/1 continuam sendo julgados sem sustentação oral de seus advogados presencialmente ou ao vivo por meios eletrônicos, e que outras violações às prerrogativas da advocacia têm sido constantes.

"São restrições ao direito de acesso aos autos, impedimentos à participação efetiva nos atos processuais, e dificuldade na comunicação direta com o ministro relator, sendo os advogados proibidos de ter acesso ao magistrado”, enumera.

A situação já foi denunciada na Gazeta do Povo por advogados como Ranieri Gonçalves, que citou entraves que colegas de todo o Brasil estão enfrentando ao serem “obrigados a retirar cada mudança fisicamente [no STF, em Brasília], o que encarece e dificulta a defesa”, lamentou, citando ainda que, em muitos casos, o acesso é restrito a apenas “partes do processo”.

Ranieri representa a ré Debora Rodrigues dos Santos, mãe de dois meninos — de 6 e 9 anos — e já solicitou oito vezes prisão domiciliar para ela. Pela jurisprudência da Corte, a cabeleireira paulista deveria aguardar o processo em casa, mas está presa desde março de 2023 por escrever “Perdeu Mané” na estátua da Justiça, localizada em frente à fachada do STF, com batom lavável. “Uma situação absurda, pois nega à mulher a capacidade de se defender", disse.

Outro advogado, Gustavo Nagelstein, também fez denúncia semelhante ao relatar que só conseguiu acesso ao inquérito de seu cliente — o mecânico gaúcho Gilberto da Silva Ferreira — quatro meses após a prisão. O homem foi preso em março de 2023 por ter participado nas manifestações de 8 de janeiro, e segue atrás das grades por mais de 470 dias, sem denúncia.

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“O que existe é um inquérito mostrando fotos dele na Esplanada dos Três Poderes, nenhuma danificando qualquer patrimônio público”, aponta o advogado, que tem argumentado que o réu deve aguardar julgamento em liberdade porque ainda não tem sentença. Porém, todos os pedidos foram negados por Moraes.

“Esse argumento vale para qualquer crime, seja homicídio ou tráfico de drogas, e o fato de ser desconsiderado aqui nos deixa perplexos”, continua Nagelstein, denunciando ainda a morosidade nas decisões e o fato de “partes do processo serem sigilosos até para o advogado”.

“Esse argumento vale para qualquer crime, seja homicídio ou tráfico de drogas, e o fato de ser desconsiderado aqui nos deixa perplexos”

Advogado Gustavo Nagelstein

Asfav encaminhou ofícios à OAB

A Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro (Asfav) já enviou diversos ofícios à OAB a respeito dos casos e solicita que a entidade dialogue com a classe e defenda a atuação dos profissionais.

“Parece que a OAB está sempre pisando em ovos e, quando se posiciona, de alguma maneira volta atrás”, lamenta a presidente da Asfav, Gabriela Ritter, ao garantir que os advogados não querem enfrentar a OAB, mas que precisam ser defendidos por ela.

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Afinal, “garantir os direitos dos advogados é, acima de tudo, preservar a integridade do processo judicial e a eficácia de defesa e do contraditório, pilares sobre os quais se fundamenta todo o sistema de Justiça”, finaliza o advogado Hélio Junior.

OAB responde após publicação da reportagem

Depois da publicação da reportagem, o Conselho Federal da OAB entrou em contato com a Gazeta do Povo, informando que "não recebeu qualquer pedido dos advogados do senhor Filipe Martins".

De acordo com o presidente interino do CFOAB, Rafael Horn, a entidade só atua nos processos judiciais em defesa das prerrogativas quando instada pelo advogado da causa.

"A OAB não pode intervir em um processo judicial sem a anuência do advogado que teve sua prerrogativa violada. E isso se explica porque em diversas ocasiões a violação de prerrogativa gera nulidades futuras de todo o processo judicial, a beneficiar o próprio acusado e servir como fundamento de defesa a ser utilizado pelo advogado que teve sua prerrogativa violada", afirma Horn.

Sobre as violações às prerrogativas dos advogados relacionadas ao 8 de janeiro, a OAB informou que se manifestará ainda nesta quinta-feira (11).

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