A notícia de que uma rua poderia atravessar a Praça Miguel Couto a Pracinha do Batel atropelou a rotina da pesquisadora Cassiana Lacerda, professora aposentada da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ela não perdeu um capítulo da história: assistiu aos noticiários e leu reportagens e cartas do leitor com a aplicação de uma colegial. Fez também a sua parte recorreu ao próprio arquivo em busca de mais e mais argumentos que pudessem contribuir para manter o logradouro intacto. Escreveu artigos. Manifestou-se. Foi seu modo de torcer por um final feliz. Até saber da decisão da desembargadora Regina Afonso Portes, que autorizou no início da semana as máquinas da prefeitura a arrebentarem o petit-pavê que interrompia a ligação entre as ruas Carneiro Lobo e Costa Carvalho. Fim de praça. O sentimento foi de indignação.
"Não posso acreditar. Não bastasse a importância histórica, vão sacrificar um lugar afetivo da população. Isso fere o Estatuto das Cidades. Tem de tombar", protesta, sobre a praça cuja origem remonta o século 19, ocasião em que surgiu ali o Engenho Tibagy e Iguassu, do Barão do Serro Azul doador da área. Como mostra litografia de 1889, identificada pela pesquisadora, o local já formava o famoso "cotovelo" que tanto incomoda o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), por formar, um século depois, não um comboio de carroças, mas de motoristas à beira de um ataque de nervos.
Curitiba simbolista
Cassiana Lacerda figura entre as mais importantes estudiosas brasileiras sobre decadismo e simbolismo movimentos literários que tiveram no Paraná da virada do século 19 para o 20 uma de suas principais plataformas (leia ao lado). Foi ao se aprofundar na obra de autores como Rocha Pombo e Silveira Neto entre outros , assim como nas incríveis revistas do período, como a Galeria Illustrada que a pesquisadora se deparou com uma outra faceta do movimento: sua extensão na arquitetura da capital. É aí que se encontra, por tabela, a Pracinha do Batel.
Num estudo às pressas, Cassiana Lacerda prova como o local transformado em "praça de guerra" como não se via desde os tempos em que a Rua XV virou calçadão e o Bigorrilho quase virou Champagnat integra o patrimônio simbolista do estado. Fazem parte desse acervo o prédio da Santos Andrade da Universidade Federal do Paraná; o Templo das Musas, na Vila Isabel; e a "Ilha de Ilusão" cenário em que Emiliano Perneta foi coroado "príncipe dos poetas" no Passeio Público, e cujos resquícios ainda podem ser conferidos. "Basta reparar nas colunas em forma de semicírculo para perceber que esses espaços têm a mesma simbologia. Eles se referem à Hélade são um elogio à cultura grega, que tanto fascinou os simbolistas. Não dou muito tempo e vão acabar com o Bosque Gomm a última reserva de araucárias perto do Centro", profetiza.
A Curitiba que enriqueceu no Ciclo do Mate com folga, um dos capítulos fundamentais em seus mais de 300 anos e que se refinou nos labirintos da poesia simbolista permanece visível nessas edificações. Para gente como Cassiana, é por cima dessa memória que a prefeitura está passando. Uma barbárie, diria. Mas não há consenso. Mesmo entre os que questionam a tirania do trânsito decidindo os destinos da cidade, há quem critique políticas de patrimônio mais conservadoras, ou que tendam a engessar determinados espaços e equipamentos, impedindo o seu uso. "É uma pena. Mas se pensarmos que nenhum bem do passado pode ser mexido ainda estaríamos no tempo das carroças", argumenta o ex-prefeito de Curitiba Ivo Arzua, responsável por grandes intervenções urbanas na Curitiba da década de 60.
Para Cassiana, contudo, o sintoma é mais grave. "Estamos na época pós-utópica, hedonista, consumista, que nega o lugar da história", esbraveja, sobre um fenômeno que preocupa intelectuais dos quatro costados. A cultura, lamentavelmente, não está incluída entre os grandes debates da atualidade, a exemplo da violência e do meio ambiente. Resta-lhe o status de adorno, de entretenimento e de produto. Num mundo perfeito, a afeição da população pela praça, a representação do Batel na vida da cidade e o significado histórico do equipamento seriam colocados na conta.
Por essas e outras diz a pesquisadora o trânsito lento e a escandalosa cifra de um milhão de automóveis suplantaram os argumentos de urbanistas, historiadores e moradores de região, fazendo deles o pequeno exército de Brancaleone. "Já pensou se um extraterrestre chegasse e visse tanto carro? Acharia que eram pessoas. Nenhum lugar do planeta tem prédios com vagas para tantos automóveis no estacionamento. Deveria ter taxação em cima." A alegação de que os veículos se tornaram mais importantes que as pessoas também vale para a cultura da qual a pracinha faz parte. Em ambos os casos, a discussão não avançou, atropelando, inclusive, o empenho do setor de Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura em proteger o local e garantir a avaliação da praça.
Tempo esgotado. Não é a primeira vez que o legado simbolista é engolido pelo asfalto. Hoje esquecida, a Praça Goethe na João Gualberto, altura da Travessa Lutero tinha uma arquitetura parecida à da Pracinha do Batel. Uma fotografia feita pelo mestre Arthur Wischral na primeira metade do século 20 escancara a semelhança entre os dois logradouros. Estão ali as colunas em semicírculo, a jardinagem discreta e a pedra portuguesa. Para quem desce na estação-tubo Maria Clara nome original da Goethe, contudo, o que se vê é uma trincheira barulhenta, a Banca de Revistas Mauá, três assentos e indícios de que o endereço serve de dormitório para mendigos. Não há nem placa com o nome de Goethe no metro quadrado mais alemão e protestante de Curitiba.
Essa pequena Hélade não existe mais. "Tudo bem", diriam muitos. Mas não existe nem na lembrança. O comerciante Leonardo Raimundo, 24 anos, dono da Banca Mauá, mal acredita quando vê a foto do que foi um dia a Goethe. A mesma cara de espanto fazem clientes e vizinhos. "Mas é a Pracinha do Batel", protesta um deles. Não é não. São semelhantes melhor, eram.
Tempos idos
Nos tempos da Belle Époque curitibana, entre as duas praças havia a ligação mais importante da cidade. Numa ponta estava a Avenida João Gualberto, no Alto da Glória melhor caminho para o litoral no outro a Avenida Batel, ou Estrada Velha do Mato Grosso, "caminho da roça" para os Campos Gerais. Ao longo desse percurso circulou a riqueza da erva-mate, fazendo brotar casarões de um lado e de outro, enchendo os olhos da população que passeava de bonde.
A casa da estação permanece ali como delegacia. A riqueza mudou de mãos e as mansões que sobraram viraram restaurantes ou coisa assim. A Praça Goethe, do outro lado da cidade, virou poeira, e a Pracinha do Batel heroicamente em pé até a última terça-feira acabou sentada à beira do caminho o caminho que agora leva da Água Verde ao Bigorrilho. De carro. Para os que juntam sua voz à de Cassiana, esse percurso falha por não incluir um sinaleiro a memória. Resta saber se alguém ainda se importa com isso.