A vida de Rafael Nogueira foi transformada no fim do ano passado. Desde que ele foi nomeado presidente da Biblioteca Nacional, no dia 2 de dezembro, o professor de filosofia, história, teoria política e literatura de 36 anos transferiu sua rotina para o Rio de Janeiro – ao menos nos dias de semana. O tempo livre, por enquanto, ele continua passando em Santos, cidade onde nasceu e vive. Num futuro próximo, pretende transferir residência para a cidade do novo emprego.
Nascido Rafael Alves da Silva, o professor incorporou o Nogueira ao nome em homenagem à família de sua mãe, ainda que ela não tenha registrado o sobrenome na certidão de nascimento. Envolvido com cultura e educação desde o primeiro emprego, aos 19 anos, ele passou os últimos cinco anos organizando cursos livres cujo objetivo era aprofundar conhecimentos específicos (de história a política) com base nos autores clássicos. Depois de assistir a uma de suas palestras, o Secretário de Cultura do governo federal, Roberto Alvim, pediu a ele um currículo. Posteriormente, convocou Rafael Nogueira a assumir a maior e mais importante biblioteca da América Latina.
Fundada em 1814, a partir do legado deixado pela família real quando da chegada do rei português Dom João VI ao Brasil em 1808, a Biblioteca Nacional tem por missão preservar a memória nacional – é uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo, com mais de 9 milhões de peças, com exemplares históricos como o primeiro livro impresso, a Bíblia de Johann Gutenberg, do século 15. Ao assumir o posto de presidente da instituição, Rafael Nogueira se junta a nomes de peso da intelectualidade brasileira que também estiveram à frente da Biblioteca Nacional, como Pedro Corrêa do Lago, Muniz Sodré, Affonso Romano de Sant'Anna e Josué Montello.
Logo após ser nomeado, o novo presidente da instituição recusou pedidos de entrevista. Queria antes entrar em contato com a equipe da Biblioteca Nacional antes de se manifestar publicamente. Nos primeiros dias após sua nomeação, uma série de reportagens baseadas em sua conta no Twitter e em palestras divulgadas no YouTube, além de suas contribuições para a produtora Brasil Paralelo, apresentaram um perfil que Nogueira considera incorreto. Na entrevista à Gazeta do Povo, ele apresenta suas credenciais para o cargo e explica suas principais propostas para a Biblioteca Nacional.
O senhor se chama Rafael Alves da Silva ou Rafael Nogueira?
Alguns jornais me descreveram como “Rafael Alves da Silva, que se apresenta como Rafael Nogueira”, como se eu tivesse cometido algum crime. A explicação é simples: a minha mãe é Márcia Nogueira, a minha avó é Aurora Nogueira. Mas o nome que me foi dado na certidão de nascimento não tem o Nogueira. Num determinado momento da minha vida, quando fui estudar história, tomei contato com um livro que me foi dado pela minha avó, chamado Nogueiras do Brasil. Foi quando conheci a trajetória inteira da família. Por isso preferi adotar o nome materno. Para evitar trocar todos os documentos, acabei optando por não alterar o nome judicialmente. Isso foi um erro, porque agora está dando confusão.
Além da curiosidade da imprensa, o que mais mudou em sua vida ao se tornar uma figura pública?
Eu era relativamente conhecido por um nicho, formado pelas pessoas que gostam de estudos dos livros clássicos, além dos conservadores e dos alunos do professor Olavo de Carvalho, que conhecem os documentários que eu fiz com a produtora Brasil Paralelo. Mas, para o público mais amplo, agora é que estou ficando conhecido. Estou no primeiro mês de adaptação, ainda estou sentindo os efeitos dessa modificação. As primeiras reportagens sobre mim não ajudaram. Algumas usaram foto errada, outras recorreram a imagens de frames de vídeos meus – escolheram cenas em que eu apareço fazendo caretas. Um jornal republicou um tuíte meu de 2009, que eu repostei em 2017, em que eu criticava o excesso de música popular nos livros didáticos. O jornal lançou uma manchete dizendo que eu associava Caetano Veloso ao analfabetismo. Não foi essa a relação que eu fiz, eu não disse que Caetano Veloso é responsável pelo analfabetismo. A questão é que a música popular não prejudica a alfabetização. Mas ela não pode ser o centro de toda a estratégia de ensino, precisamos galgar degraus mais altos com os alunos.
Quem, então, é Rafael Nogueira?
Acima de tudo, sou professor. Cursei três graduações, Filosofia, Direito e História, nessa ordem. Tenho uma longa carreira em educação. Dei aula para ensino fundamental, médio, técnico e superior online. Fui coordenador de escola. Dei palestras, cursos livres, lecionei História do Brasil para candidatos a altos cargos na Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Meu primeiro emprego foi na Academia Santista de Letras, como assessor da presidência. Eu tinha 19 anos e cuidava da biblioteca, além de ajudar a organizar e promover os eventos literários. Passava o dia todo na biblioteca da academia, seja lendo, seja ajudando os visitantes a encontrar seus livros. Então vamos com calma com essa história de que eu não tenho experiência com bibliotecas.
O senhor é aluno de Olavo de Carvalho?
Sim, eu o conhecei em 2003, quando ele fez uma palestra em Santos. Ele parecia um Sócrates, trazendo reflexões com muita cultura e uma grande habilidade em mostrar onde estava nossa falta de sinceridade. Achei interessante continuar os cursos dele. Aprendi que, mais do que estudar para acumular cultura, é preciso estudar para formar personalidade. Ainda hoje sou aluno dele, mas isso não significa que ele vá intervir pessoalmente na biblioteca. Não conversei com o Olavo sobre a biblioteca, não recebi nenhuma dica ou orientação dele. Quem vai conduzir a biblioteca é Rafael Nogueira.
O senhor é terraplanista, como alguns jornais sugeriram?
Não tenho nada com isso, nunca falei sobre isso. Para mim, o modelo da terra global é satisfatório, não tenho nada com essa discussão.
O senhor é monarquista?
Eu tenho um pendor a favor da ideia da monarquia, por gostar daquele período. A República tem se dado muito mal aqui no Brasil, nós tivemos muitos golpes de estado, muitas ditaduras, muitas revoltas e revoluções. O período da monarquia foi muito mais estável. Agora, o Brasil pode ser certo tanto quanto república quanto como uma monarquia constitucional parlamentar – que não tem nada de autoritária. Basta aprender com os bons exemplos: o nosso modelo do século 19 para a monarquia ou o modelo republicado dos Estados Unidos, que traz grande estabilidade.
Como foi seu primeiro contato com a equipe da Biblioteca Nacional?
As pessoas estavam com medo. Então, no primeiro dia, fiz questão de procurar, primeiro a diretoria, depois as associações de servidores. Expressei minha admiração pela instituição e pelas pessoas que a mantêm. A biblioteca é uma instituição bicentenária, conquistada a duras penas por Dom Pedro I e mantida na República com muito respeito. Ela tem a missão de preservar a memória bibliográfica nacional. Então eu me apresentei e disse a todos que ficassem calmos porque meus objetivos eram os mesmos daquelas pessoas: o bem da biblioteca. Expliquei que só vai estar contra mim quem tem objetivos particulares ou políticos. Com isso, as pessoas perceberam que eu não sou um monstro. Algumas, por motivos ideológicos, vão tentar dificultar minha vida ou me derrubar. Sou representante do governo eleito, a maioria dos eleitores escolheu o presidente Jair Bolsonaro. Faz parte do diálogo democrático que eu me entenda com todos os grupos envolvidos no dia a dia da instituição. Estou propondo isso desde o meu primeiro dia.
Qual é sua principal prioridade?
Segurança. Já conversei com a equipe de segurança para que qualquer pessoa que esteja carregando sacolas de volume suspeito seja revistada. Eu mesmo já fui revistado, e os seguranças me agradeceram por ter dado o exemplo. Além disso, pedi o encaminhamento de todas as reformas necessárias para melhorar a segurança contra incêndios. A biblioteca está bem equipada, mas faltam alguns detalhes importantes. Se o acervo não está seguro, não adianta fazermos um monte de projetos. O incêndio no Museu Nacional foi um episódio muito triste, só sei que eu não vou errar por negligência. A segurança da biblioteca será o legado para as próximas gerações.
Quais seus outros projetos?
Quero recuperar a alma da biblioteca. Para isso pretendo atuar em quatro frentes. A primeira é garantir que todas as editoras enviem exemplares de todos os seus livros para a biblioteca, que é a depositária legal. Muitas vezes algumas editoras pequenas não enviam exemplares, e isso prejudica a preservação da memória brasileira. Pelas informações que eu levantei, existe alguma confusão nessa parte. Vou fazer um levantamento a respeito disso.
A outra frente de atuação é retomar a parte de pesquisa e editoração. Nós temos condições de dar bolsas de pesquisa, e eu quero que essas bolsas sejam dadas para pesquisadores que usem o nosso acervo focando, de preferência, no aniversário de 200 anos da Independência do Brasil, que serão celebrados em 2022.
Também quero produzir coleções a partir dos nossos jornais. Nós temos um acervo enorme. Eu estou levando para a biblioteca amigos que são colecionadores inveterados, leitores de jornais antigos, para nós resgatarmos a intelectualidade brasileira de décadas passadas. A intelectualidade brasileira que se concentrava nos jornais, e muito desse pensamento se perdeu. Quero fazer esse resgate.
Por fim, tenho o objetivo formativo. Temos um problema de analfabetismo pleno no Brasil, e eu quero estimular o contato com os livros a partir de eventos que não sejam só para uma elite já inteiramente alfabetizada. Quero levar para a biblioteca professores de alta capacidade para ensinar desde literatura juvenil até os clássicos. Queremos criar um maior interesse pelos livros. Muitas vezes, para a pessoa que lê pouco ou não lê, o livro parece um obstáculo, quando na verdade ele pode responder à nossas perguntas. O papel do bibliotecário é esse, é mostrar onde está o tesouro que a pessoa busca. Precisamos colocar os tesouros culturais nas mãos das pessoas.
O senhor se adaptou bem ao Rio de Janeiro?
Por um tempo vou voltar para Santos aos fins de semana, estou instalado provisoriamente em hotel. Aqui em Santos eu tenho um vínculo muito grande com a cidade, grupos de estudo, família. Mas vou tentar ficar no Rio, estou gostando muito da cidade. Eu tinha o preconceito natural de paulista quanto à segurança na cidade, mas parece que há muitos "Rios" dentro do Rio. O Rio ainda é um grande depósito cultural, tem não só os prédios históricos, mas também pessoas muito cultas.