Reza a lenda que na Curitiba da década de 70 quando a cidade passou a receber levas de paranaenses afugentados pela geada negra que dizimou os cafezais volta e meia se ouvia uma barbaridade do tipo: "O que é essa tal de Foto Brasil da qual vocês tanto falam?" Nada poderia deixar mais boquiaberto um curitibano da gema do que uma pergunta como essa. "A gente dizia que quem não tirou um retrato no Foto Brasil não morou em Curitiba", brinca o dentista e professor universitário Leo Kriger, 65 anos, filho do fotógrafo e restaurador Isaac Wolf Kriger um dos responsáveis pela fama do estabelecimento que durante sete décadas foi o mais famoso do ramo na capital, quando não do estado.
O sonho acabou para o Foto Brasil em 2001, ano em que o último sócio, Erwin Jacobs, o Bubi, hoje com 72 anos, passou a chave na porta e devolveu o imóvel ao senhorio. Não havia mais como continuar. O mundo um dia visto da famosa sacada do estúdio tinha mudado muito, deixando para as páginas da história as fotos em chapas de vidro e os minuciosos retoques nos negativos feitos com lápis e uma mistura de breu com terebentina. Mas como diriam os saudosistas, "o tempo não apaga".
O fotógrafo José Kalkbrenner Filho do panteão dos célebres fotógrafos curitibanos guarda em casa uma foto de família feita há 73 anos, por suas contas. "As famílias botavam a melhor roupa para tirar fotografia no Foto Brasil. E não era muito acessível para operário, não", diz o veterano, dono de uma máquina com chapas 24 X 30 cm, que pertenceu aos irmãos Jacobs, fundadores do Foto Brasil. Ele não abre mão Kalkbrenner e quem mais conheceu o estúdio concordam: o local era uma grife.
Basta puxar conversa com algum bem-aventurado que tirou retrato na loja na Rua XV de Novembro, 94, para ouvir em detalhes a descrição da escada de madeira que rangia, a lembrança das fotos de Fanny Lerner ainda solteira na vitrine, assim como o retrato "mimoso" do apresentador de tevê Sale Wolokita, no comando do cavalinho de madeira que era a prata da casa. Só Deus sabe em quantos álbuns de fotografia figura esse brinquedo. Chegando ao segundo andar, a imagem, atrás do balcão de madeira, era a de Isaac Kriger com folga tão famoso na Curitiba de seu tempo quanto Maria Polenta, a italiana que consertava ossos. Já Walter Jacobs fundador da casa era o sujeito em silêncio na sala de revelação.
Há quem diga que parte da fama do Foto Brasil se deve a Isaac o judeu-polonês que tocava bandolim, amava música clássica e foi um dos primeiros curitibanos a ter radiola. Em tempo entrou para a história como o mais apaixonado dos coxas-brancas e como barista amador: mandava buscar café solúvel na Argentina. Tão simpático quanto original, Isaac bem poderia ser um personagem da literatura. Homem pequeno, de 1,5 metro, fugiu da Polônia no início da década de 30, logo que seus pais previram os estragos que seriam causados pela ascensão do nazismo. Antes de partir, aprendeu um ofício a fotografia para que pudesse se virar em terra estrangeira. Foi o que lhe valeu. A família acabou toda vitimada pelo Holocausto e Isaac teve de adotar a nova pátria e seus moradores.
Pelo que se sabe, não se intimidou. Não espanta que muita gente fosse ao Foto Brasil para ser atendido por ele de desembargadores ao garçom do Restaurante Zacarias. Nada mais natural o pequenino era um show, subia em cadeiras como se fosse Fred Astaire e era capaz de peraltices como esbarrar um espanador no nariz dos bebês para que rissem. Nas horas vagas, fazia trabalho voluntário para a antiga Delegacia de Menores, registrando maus -tratos sofridos por crianças. Mas seu maior trunfo era o restauro e colorização das imagens. Não se trata de um elogio ao vento. Basta olhar uma imagem carimbada pelo Foto Brasil para conferir a qualidade das revelações, a harmonia da composição e a luz inconfundível.
Nenhuma fotografia saía do estúdio sem ser retocada, o que deu ao local a fama de deixar todo mundo bonito numa época em que não havia o photoshop. "Se alguém queria uma foto rápida não ia na nossa loja. Ali, ia demorar mais, pois a gente cuidava de cada imagem. Só que sem tirar a barriga, como fazem hoje", explica Bubi que também trabalhou no restauro. Ele tira da cartola lembranças de clientes extasiados com a própria imagem. "Cheguei a ganhar beijo por causa dos bons resultados."
Não por menos, formavam-se filas na porta do Foto Brasil, ora de formandos uma das especialidades da casa eram os álbuns e os quadros gigantescos , ora da meninada com roupa de Primeira Comunhão, muitos chegados até a XV depois de comungar na paróquia e enfrentar um ônibus até o Centro, com roupa branca, terço, vela e catecismo na mão. Tinha de pegar senha. Sem falar nas noivas depois da bênção nupcial, debutantes com mangas arfantes antes do baile e famílias inteiras com roupa de domingo em pleno dia de semana. O que se buscava naquele endereço era um retrato para a eternidade. Pelo que se sabe, ninguém saía decepcionado.
"Esse costume só mudou quando as pessoas, em vez de produzir a memória num espaço como o do Foto Brasil, passaram a produzir a memória em casa, com suas próprias máquinas e filmadora", comenta a socióloga Graça Bandeira, pesquisadora do Museu da Imagem e do Som (MIS), onde está parte do gigantesco acervo do Jacobs, Kriger & Cia. A outra parte está na Casa da Memória, órgão da Fundação Cultural de Curitiba e o melhor da história nos arquivos familiares de milhares de curitibanos. As provas da existência dessa documentação são flagrantes: álbuns de madeira, recheados com lâminas de papel-foto e papel-arroz, totens de formatura, retratos colorizados e pastas com a inscrição na capa "Foto Brasil" saltam das gavetas por ai.
A quantidade de pesquisas que esse acervo o público e o privado pode render, não se conta na ponta dos dedos. É possível investigar a moda na Curitiba do século 20; as relações familiares particularmente a hierarquia - padrões de beleza; religiosidade; festejos, além dos processos fotográficos da lâmina de vidro à era pré-digital. "Até a gestualidade típica de cada época dá para investigar", acrescenta a antropóloga Ana Maria Hladczuk, autora, em parceria com Oksana Boruszenko, do estudo Jacobs, Kriger & Cia Foto Brasil, publicado no Boletim da Casa Romário Martins em 1991. É um dos raros documentos sobre o assunto. O que é uma pena.
Fotografias ainda são usadas com cerimônia em pesquisas históricas. Não bastasse, é um tipo de fonte que esbarra na falta de informações, já que se acumulam, na maioria das vezes, à mercê da informalidade doméstica. O fotógrafo Orlando Azevedo que preserva em seu estúdio uma das mesas do Foto Brasil sabe bem quanto custa um levantamento histórico sobre fotografia. Ele adquiriu o acervo dos irmãos Alberto e Augusto Weiss, pioneiros da arte do retrato na capital, e esbarra na velha dificuldade: a falta da legenda. A idéia é fazer um livro, com parte da coleção com cinco mil chapas de vidro e as histórias da Foto Progresso, plantada de 1880 à década de 80 na Rua São Francisco onde hoje é o Jokers.
Para levantar o máximo de dados sobre Weiss, Azevedo, fatalmente, mergulhou no universo das fotos de estúdio das primeiras décadas do século passado. Fala com fluência de Bianchi retratista que fez a vida em Ponta Grossa , Arthur Wischral, do lapeano Glück. Viraram seus velhos amigos. Deles, garante, ficou a lembrança de um tempo em que tirar fotografia era um ritual cercado elegância e de regras. "Havia uma liturgia. O tempo de exposição era grande, não se podia piscar. Pedia-se pose. Os fotógrafos daquele tempo eram ourives do ofício", resume Azevedo sobre o ouro que Jacobs e Kriger, entre outros, deixaram nos lares curitibanos.