Um grupo de organizações não governamentais (ONGs) ligadas à infância e educação enviou neste mês um relatório à Organização das Nações Unidas (ONU) para alertar sobre os efeitos negativos do ajuste fiscal na garantia dos direitos das crianças. Nos próximos dias 21 e 22, o governo brasileiro será sabatinado em comitê da ONU especializado em questões da infância.
O novo documento atualiza um diagnóstico, de fevereiro, já apresentado às Nações Unidas pelas entidades, que tratava de educação, saúde, segurança, trabalho infantil, entre outros temas. Um dos objetivos foi acrescentar dados sobre os recentes cortes de gastos federais na educação. Também entraram no relatório outros pontos, como a privatização e a militarização do ensino, a relação entre educação e gênero e a redução da maioridade penal.
O material foi produzido pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Ação Educativa e a ONG Conectas. O governo brasileiro também enviou informações ao comitê e será representado pela Secretaria de Direitos Humanos na sabatina, em Genebra, na Suíça. Lideranças dos movimentos também acompanharão o debate.
O comitê, composto por 18 especialistas, é responsável por monitorar se os países signatários da Convenção da ONU sobre Direito das Crianças estão cumprindo as obrigações. As sabatinas periódicas do órgão fazem parte desse processo. O Brasil, que assinou o documento em 1990, se apresentou ao comitê pela última vez há 11 anos.
“Esse ajuste fiscal tem grandes impactos nos programas sociais e na construção de equipamentos escolares”, explica Maria Rehder, coordenadora de projetos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “Ainda temos 3,8 milhões de crianças entre 4 e 17 anos fora da escola e essa situação pode piorar nesse cenário”, diz.
Além das verbas atuais, há preocupação com o financiamento do setor em longo prazo. A estimativa é de que a União precise investir até três vezes mais do que gasta hoje por aluno para ter o padrão mínimo de qualidade previsto pelo Plano Nacional de Educação (PNE). Isso significaria, segundo estimativas, colocar R$ 37 bilhões extras na educação básica pública. “Os cortes trazem riscos de inviabilizar o PNE.”
As entidades ainda criticam o avanço do setor privado, “muitas vezes com subsídios públicos”, mas com dificuldades de controle social. Segundo o documento, é urgente adotar regras para “proibir ou limitar o lucro na educação”, além de frear políticas fiscais e tributárias de incentivo às matrículas na rede particular.
O grupo manifesta preocupação com o crescimento das escolas militares, que restringem a liberdade de professores e alunos, na avaliação das entidades. Ainda denunciam a mobilização contra incluir políticas de redução de desigualdades de gênero nos planos locais de educação, como aconteceu na capital paulista.
Também destacaram o avanço da proposta de redução da idade penal no Congresso em 2015. “É esperado que o comitê da ONU manifeste-se contra a redução da maioridade penal e que cobre explicações do Brasil sobre o que tem sido feito para impedir este retrocesso”, afirma Camila Asano, do Programa Política Externa da Conectas.
Os questionamentos e a sabatina podem constranger o País diante dos organismos internacionais ao dar mais visibilidade a problemas crônicos. “E o mais importante é: as recomendações feitas pelo comitê têm o potencial de direcionar o Estado naquilo que é importante de cumprir nas políticas públicas relacionadas às crianças”, aponta Rodrigo Deodato, um dos coordenadores da Anced.
Geralmente, os apontamentos do comitê da ONU são feitos algumas semanas depois das sabatinas. “Mas infelizmente essas recomendações não têm caráter vinculante e imediato”, acrescenta Deodato.
O Ministério da Educação (MEC) afirmou que mantém total compromisso com o PNE. Disse ainda que o plano “tem metas de curto, médio e longo prazo e que questões conjunturais não afetam o cumprimento das mesmas.” O ajuste fiscal, argumenta a pasta, preserva programas e ações estruturantes e essenciais.
A pasta também lembrou que o PNE “não determina como devem ser os gastos com educação”. O ministério entende que o investimento em programas como o Fies e o ProUni, que bancam cursos de graduação em escolas privadas, são inclusivos. Ainda disse que apoia, por políticas públicas, os sistemas de ensino a estimular o debate sobre “preconceito, discriminação, violências no cotidiano escolar”.
Já a Secretaria de Direitos Humanos afirmou que “sempre foi contrária à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que reduz a maioridade penal e atua fortemente para que essa mudança não ocorra.” A pasta acrescentou que o objetivo é conseguir um consenso no Legislativo para atender demandas relativas ao tema, resguardando conquistas históricas.