Crianças e adolescentes estão apresentando doenças físicas e psicológicas devido às prisões impostas aos pais que estiveram nos atos do 8 de janeiro; as condenações chegam a 17 anos| Foto: Camila Correia / Arquivo pessoal
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Preso sem denúncia do Ministério Público (MP) por 18 meses, o ex-policial militar Marco Alexandre Machado de Araújo não acompanhou a gravidez da esposa, o nascimento da filha Lyz e nem os primeiros sorrisos, sons ou brincadeiras da pequena. “Nossa filha já fez nove meses e só viu o pai duas vezes até hoje, na prisão”, relata a mineira Juliane, que cria a bebê sozinha desde que o companheiro foi preso após os atos do 8/1.

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“Como ele não quebrou nada e só ajudou pessoas naquele dia, o Marco tinha certeza de que seria liberado e foi apresentar-se voluntariamente à Polícia Federal (PF) depois de o procurarem aqui em casa”, conta Juliane, informando que o ex-policial nunca voltou à residência em Uberlândia (MG).

“Segue preso há um ano e meio, sem denúncia do Ministério Público, sem ação penal e sem qualquer perspectiva de liberdade”, lamenta, ao afirmar que a filha do casal está crescendo rapidamente e precisa da presença do pai.

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Assim como a pequena Lyz, os irmãos Francisco, Maria, Ana, Emílio, José e Paulo também estão sem a figura paterna desde que o empresário Ezequiel Ferreira Luis foi condenado a 14 anos de prisão por participar do 8 de janeiro.

“Ele era nosso porto seguro”, relata a rondoniense Vanessa Rolin Vieira, de 34 anos, que passou a cuidar sozinha da empresa, da casa e dos seis filhos — o mais novo com cinco meses. “Tenho que tomar todas as decisões, das mais simples às mais complexas, e sem a presença paterna fica muito difícil. As crianças querem, muitas vezes, só um abraço do pai, e eu também”, diz, com voz embargada.

"As crianças querem, muitas vezes, só um abraço do pai, e eu também”

Vanessa Rolin Vieira, esposa de Ezequiel Ferreira Luis, condenado a 14 anos de prisão por estar no 8/1

Segundo a moradora de Ji-Paraná (RO), o marido não quebrou nada em Brasília, mas permaneceu sete meses preso em 2023 e foi condenado em maio deste ano, alguns dias após o nascimento do caçula. “Meu marido acabou decidindo se refugiar em outro país, e vivemos com a angústia de não saber quando ele abraçará os filhos novamente”, revela.

O dilema da família foi divulgado, inclusive, pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em um vídeo que se espalhou pelas redes sociais no final de setembro. Na publicação, Bolsonaro descreve Ezequiel como um “homem trabalhador e honrado” e chama as crianças de “órfãos de pais vivos”.

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De acordo com Vanessa, a ausência do esposo desequilibrou o emocional da família, afetou as finanças e prejudicou a saúde dos filhos. “A imunidade deles está baixa e agora vivem doentes”, relatou à reportagem enquanto voltava do hospital na última segunda-feira (14). “Estou com dois filhos diagnosticados com pneumonia.”

“Filhos de presos do 8/1 estão adoecendo”, dizem especialistas

Adoecimentos frequentes assim têm se repetido entre os filhos de diversas famílias do 8/1. De acordo com a psicanalista clínica Lucianne Lober, coordenadora voluntária na área de saúde mental da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de janeiro (Asfav), há casos de ansiedade extrema, terror noturno, distúrbios de sono e baixa imunidade.

“Essas crianças e adolescentes vivem gripadas, as que têm bronquite ficam atacadas constantemente e estão mais suscetíveis a desenvolver outras doenças devido ao sistema emocional comprometido”, revela a especialista, ao citar o exemplo de uma paciente de 15 anos.

“Filha de uma condenada do 8/1, essa mocinha está com síndrome do pânico”, relata a psicanalista, que atendeu a garota alguns dias após a jovem visitar a mãe no exílio. “Ela não suportou o fato de voltar”, explicou Lucianne, comparando o sentimento da garota ao de um órfão que é obrigado a viver sem a presença materna, com medo constante. “Um trauma que vai ficar para sempre”, continuou.

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Ainda segundo a especialista, os distúrbios apresentados devido ao intenso sofrimento emocional também podem desencadear transtornos, além de servir como gatilho para desenvolvimento de doenças autoimunes como lúpus. "Se essas crianças e adolescentes não receberem o acolhimento psicológico adequado, estarão condenadas a adoecer”, alerta a psicanalista.

"Se essas crianças e adolescentes não receberem o acolhimento psicológico adequado, estarão condenadas a adoecer”

Lucianne Lober, psicanalista clínica que atua como coordenadora voluntária na área de saúde mental da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de janeiro (Asfav)

A lei prevê que mães cumpram prisão preventiva em casa, com seus filhos

Diante dos quadros que têm acompanhado referentes aos filhos de presos do 8 de janeiro, o neuropsicólogo Otávio Augusto Cunha Di Lorenzo aponta que os casos precisam de atenção urgente. Segundo ele, a ausência forçada dos pais aumenta significativamente a chance de doenças físicas e mentais, com consequências para o decorrer da vida.

“É por isso que a própria lei resguarda mães suspeitas de crimes, possibilitando que aguardem os processos em casa, com seus filhos”, cita o especialista, em referência ao artigo 318-A do Código de Processo Penal, que estabelece a substituição da prisão preventiva por domiciliar para mães ou responsáveis por crianças de até 12 anos.

O STF, inclusive, concedeu Habeas Corpus coletivo [143641/SP] em 2018 para favorecer todas as mulheres presas que se encontravam nessa situação. O argumento apresentado no voto do ministro relator Ricardo Lewandowski (trecho abaixo) foi de que as crianças “sofrem injustamente as consequências da prisão, em flagrante contrariedade ao Art. 227 da Constituição”, e que os “cuidados com a mulher presa” deveriam ser direcionados “não só a ela, mas igualmente aos seus filhos”.

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No entanto, “parece que esses direitos foram esquecidos nos dias atuais”, aponta Di Lorenzo, ao afirmar que os sintomas apresentados pelos filhos são graves. “Muitos já estão com crises de depressão e ansiedade, e há casos de crianças que pararam por dias de andar, falar ou comer”, relata.

Tristeza excessiva e problemas de saúde após a mãe ser presa pelo 8/1

No caso de Isabelle, de 10 anos, presenciar a mãe Jaqueline Freitas Gimenez ser chamada de “terrorista” e ser levada presa por se manifestar nos atos de 8 de janeiro foi traumatizante. “Ela e o irmão mais novo são muito apegados com a mãe, dormiam nos braços dela e estavam sempre juntos”, relata o pai Wanderson Freitas da Silva, que agora divide o cuidado dos filhos com a avó e percebe o sofrimento deles.

“A Isabelle ficou muito sentida, muito mesmo, a ponto de não conseguir ir ao banheiro por mais de um mês, chorar sem motivo aparente e não conseguir falar o que sentia”, descreve Wanderson, que trabalha como caminhoneiro e passa semanas longe de casa, angustiado com a situação. “Minha filha chegou a passar mal e minha sogra que teve que correr na emergência com ela, de madrugada.”

De acordo com o pai, Isabelle se tornou uma criança triste, que anda cabisbaixa e está sempre quieta. “Ela não expressa seus sentimentos e vê-la nessa situação corta nosso coração”, afirma, indignado por saber que não há nada que incrimine a esposa e que, mesmo assim, a mulher foi condenada a 16 anos e meio de prisão.

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“Espero que um dia a justiça seja feita, pois acabaram com a vida de uma mãe guerreira, dedicada e protetora, e quem perde são as crianças”, finaliza o caminhoneiro de Juiz de Fora, Minas Gerais.