Mais de duas mil pessoas tiveram suas vidas profundamente alteradas pelo governo brasileiro durante as revoltas da Vacina (1904) e da Chibata (1910). Desterrados, ou seja, banidos à revelia do Rio de Janeiro para o Acre, muitos desses exilados foram tachados de criminosos políticos, apesar de não existir condenação judicial alguma. Foi assim que crianças, mulheres e homens pobres se viram ao léu a mais de quatro mil quilômetros de distância de sua terra natal.
A pesquisa sobre o tema é do historiador da Universidade Federal do Acre (UFAC) Francisco Bento da Silva, que realizou uma tese de doutorado sobre o assunto pela Universidade Federal do Paraná em 2010 e, no ano passado, lançou o livro Acre, a Sibéria Tropical. Ele conta que, nos dois casos (1904 e 1910), a motivação para a expulsão dessas pessoas das terras fluminenses envolviam variáveis complexas.
Entre elas, destacam-se as questões de ordem disciplinar, inadequações às normas sociais, como jogatinas, prostituição até a prática da capoeira, delitos leves, trabalhos informais e a vida nos cortiços. Além, é claro, dos aspectos políticos e econômicos, que levaram muitas pessoas a participarem das duas revoltas.
Segundo Bento, os desterrados formavam um grupo menor dos envolvidos nos dois conflitos. "Algumas pessoas até foram desterradas sem terem participação nas revoltas, como foi o caso dos prisioneiros recolhidos na Casa de Detenção do Rio de Janeiro", explica. A versão oficial na época foi que os desterros serviram para tirar da então capital nacional os "vagabundos e criminosos irrecuperáveis, que em muitos momentos eram manipulados por adversários políticos do governo com intuito de golpe ou fragilização da ordem estabelecida".
"O desterro dessas pessoas foi utilizado para dar um exemplo de como o governo agia e agiria diante de quaisquer revoltas", explica o pesquisador. Todas embarcavam em navios para desembarcar na Região Amazônica.
Sem adversários
Ao ser incorporado ao Brasil em 1903, o Acre passou a ser o único território federal brasileiro administrado diretamente pela União. "Desta forma, o governo federal não teve que negociar com autoridades locais ou adversários políticos regionais", explica Bento. Além dessa questão de ordem política, havia outros aspectos simbólicos. "O Acre era visto com a terra da riqueza da borracha, que precisava de braços para o trabalho extrativo. Além de ser um local tomado pelo vazio demográfico e de morte pelas doenças tropicais endêmicas, com uma fronteira política tensionada", salienta o pesquisador.
A recepção dos nativos acrianos aos desterrados não foi das mais calorosas, pois a notícias na época davam conta da chegada de vagabundos e criminosos. "Essas pessoas já chegaram com forte rejeição. Foram tratadas com desconfiança e temor. Muitos certamente tiveram que, nos anos seguintes, refazer suas identidades e esconder o passado de desterrados."
Capital era palco dos protestos
Foram duas revoltas que envolveram múltiplos sujeitos e interesses. A chamada Revolta da Vacina ocorreu em novembro de 1904, tendo como estopim o projeto de lei que regulamentava a obrigatoriedade da vacinação antivariólica na então capital da República, o Rio de Janeiro. "A obrigatoriedade afetava o cotidiano de inúmeras pessoas que tinham aversão à vacinação por descrença na sua efetividade, por questões de ordem moral, religiosa e até princípios filosóficos, como era o caso dos positivistas", diz o historiador Francisco Bento.
Ele afirma também que essa antipatia foi aproveitada pelos adversários políticos do então presidente Rodrigues Alves para insuflar a população insatisfeita com inflação alta, falta de moradias, transtornos das reformas urbanas, política de repressão aos cortiços, prostituição, vagabundagem, trabalhadores informais, entre outros.
"Assim como a Revolta da Vacina não ocorreu só pela questão da vacina, a Revolta da Chibata não foi algo que ocorreu só pela questão do uso dos castigos físicos contra marinheiros, isso foi também o estopim", afirma Bento. Em 1910, quando os marinheiros se rebelaram contra seus superiores na Armada Nacional, traziam insatisfações de longa data. Os marinheiros eram geralmente homens pobres, ampla maioria de negros e mestiços, que eram alistados à força desde o fim do Império e no início da República.
Quando os marinheiros tomaram os navios e ameaçaram bombardear a capital federal, o governo ficou acuado e negociou, para depois se vingar prendendo e matando muitos revoltosos.
"Ao declarar nos dois episódios o estado de sítio, o governo teve em suas mãos amplos poderes extraconstitucionais que permitiam prisões sem mandados, provas contundentes e realizando desterros para fora da capital", completa Bento.