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Fernando Martins

Os gregos e o mensalão

O Ocidente emprestou dos gregos antigos a democracia, uma invenção de 2,5 mil anos. E herdou as virtudes e defeitos do sistema político. Aristóteles observava àquela época que a degeneração das instituições democráticas resulta em demagogia. Nada mais contemporâneo. Tão atual quanto os dilemas, já existentes na Grécia Clássica, do sistema judiciário – algo que fica claro num julgamento como o do mensalão.

Por ser uma democracia, Atenas dispunha de leis e uma Justiça para punir eventuais infratores. Como os acusados tinham de se defender publicamente, logo surgiram conselheiros pagos para ensiná-los a argumentar diante da corte. E, assim, conseguir a absolvição.

Um grupo se destacou nesse trabalho primitivo de advocacia: os sofistas. Protágoras, eminente representante deles, costumava dizer que um argumento fraco pode ser transformado em forte, pois tudo tem dois lados e ambos podem ser válidos. Com isso, lançou as bases do pensamento relativista. Ou seja, de que algo verdadeiro numa situação pode não ser em outra. Alguns sofistas se notabilizaram ainda por preparar os cidadãos gregos a apenas vencer um debate – não necessariamente provando a validade do argumento, e sim persuadindo o interlocutor.

Sócrates, Platão e Aristóteles – que estabeleceram as bases do pensamento ocidental – estavam mais interessados em buscar valores universais. E foram profundos críticos dos sofistas, acusando-os de serem meros retóricos. Não é difícil saber por que o termo "sofisma" virou sinônimo de argumento capcioso, de logro.

Vinte e cinco séculos depois, a Justiça continua a ser arena do relativismo (justo ou não) e de sofismas. E os juízes contemporâneos herdaram a tarefa de encontrar a verdade em meio à guerra de retórica da defesa e acusação.

O julgamento do mensalão tem proporcionado ao cidadão comum a possibilidade de acompanhar o desenrolar dessa peculiar lógica, sobretudo a da defesa. Advogados de vários réus, para livrar seus clientes de acusações mais graves, tentaram caracterizar as infrações cometidas por eles como caso de caixa 2, cuja pena é mais branda e já está prescrita. Ou seja, usaram um crime para buscar a inocência. Não é incomum, ainda, que alguns advogados criem "realidades paralelas" para absolver seus clientes.

Isso tem um preço. Do mesmo modo que a demagogia degenera a democracia, o sofisma ameaça a verdadeira justiça. Os sofistas, embora tenham sido importantes à democracia grega ao defender acusados, passaram à história de forma pejorativa devido ao excesso de argumentação falsa, mas sofisticada (a palavra "sofisticação", inclusive, deriva de "sofisma"). Que os bons advogados contemporâneos não deixem que alguns leguem ao futuro a mesma memória que restou aos seguidores de Protágoras.

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