Há quem diga que a famigerada geração de 68, aquela que gritava haver areia da praia debaixo do calçamento cinza das cidades burguesas, ousou sonhar, e sonhou muito. Parte dessa chusma de utopias foi abandonada pelo caminho ou sepultada pela implacável realidade – a mesma que, hoje em dia, tem sido sistematicamente desprezada; uma outra parte, no entanto, persistiu e, em larga medida, moldou aspectos diversos das sociedades ocidentais contemporâneas.
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O ensino é um bom exemplo. Há pelo menos quatro décadas, de maneira obstinada e indiferente aos resultados, os educadores que se querem progressistas, que se querem herdeiros da revolução libertadora de outrora, têm se esforçado enormemente para transformar as escolas e universidades do Ocidente num verdadeiro laboratório de quimeras. Esses revolucionários do giz encasquetaram que das salas de aula sairiam os seres humanos do terceiro milênio, e que, para tal, bastava semear aqui e ali aquilo que genericamente denominavam ensino plural, um ensino supostamente crítico, antielitista e poroso à diversidade, palavra, inclusive, que ganhou ultimamente poderes quase mágicos – uma instituição escolar, hoje em dia, não precisa se preocupar muito com a qualidade do ensino que oferece, desde que o ofereça num ambiente amigo da diversidade.
Para levar adiante intento de tamanha grandeza e importância – a construção de um ser humano supostamente depurado, melhor e mais humano –, um pouco por todo lado nas sociedades do Ocidente, educadores e pais de “mentes arejadas” fizeram uma aposta arriscada, certos de que colheriam excelentes resultados: apostaram que a não transmissão da tradição cultural cristã-ocidental – acusada sistematicamente de opressora e excludente – aceleraria a criação dos tais cidadãos críticos, multiculturais e, como gostavam de repetir os rebeldes de 68, livres das amarras do passado, redimidos dos pecados que a ganância capitalista e a soberba cultural levaram seus pais e avós a cometerem.
Pois bem, decorrido meio século do sonho sonhado e pelo menos quatro décadas de bem-sucedidos esforços para torná-lo uma realidade, o ensino plural transformou-se no “senso comum” dos educadores. Os resultados, os mesmos que nunca mereceram muita atenção dos agentes, já se fazem sentir em larga escala, e o que se vê é, no mínimo, inquietante. Ao que tudo indica, a escola libertadora é uma fábrica de jovens desprovidos dos instrumentos lógicos e intelectuais mínimos para viver num mundo que gostamos de denominar “mundo da informação”, uma fábrica de jovens que se querem globalizados e multiculturais, mas que têm pouco lastro cultural e, consequentemente, diminutas referências do planeta em que vivem e do modo como vivem os outros seres humanos reais que o habitam.
Ironicamente, tudo parece ter saído contrário ao planeado. Ao invés de seres intelectualmente ágeis, informados e plurais, geramos indivíduos incapazes de decodificar mensagens que, aos ouvidos de seus pais ou avós, não soavam sequer complexas. Ao invés de críticos sagazes da realidade circundante, fabricamos um exército de indivíduos mal informados, desconhecedores do mundo e, consequentemente, incapazes de formular sobre ele uma crítica plausível, que escape a clichês ou que não recorra a argumentos subjetivos e emocionais – ao tal “lugar de fala”. Ao invés de seres livres e impetuosos, recolhemos lá na ponta seres frágeis e vitimistas, sempre assustados e dispostos a trocar a sua liberdade por proteção, e sempre esperando que o mundo lhes restitua uma bem-aventurança de que julgam terem sido privados em razão do comportamento grosseiro e politicamente incorreto dos “mais velhos”. E o que é o suprassumo da ironia, ao invés de cidadãos do mundo, tolerantes e multiculturais, parimos seres tribalistas e dogmáticos, que desprezam e querem cancelar aqueles que não pertencem ao estreito mundo que habitam, o qual costumam encarar como sendo o mundo todo.
É desse ambiente tribal que sai a galeria nada desprezível de fanáticos que desejam nada mais nada menos do que reeducar a sociedade, torná-la um espaço livre da dor, da opressão, do embate, da diferença e do contraditório, numa palavra, um espaço livre da humanidade. É daí que sai aquela gente capaz de transformar a vida dos outros humanos num exercício constante de paciência: são os irritantes fiscais da linguagem, que pensam estar instaurando o reino da justiça na terra quando substituem o artigo masculino por um arroba ou por um E, um X, um Y ou um Z. São os incansáveis guardiões étnicos que, mesmo ignorantes da história de outros povos e da sua própria, estão sempre atentos à espoliação que grupos dominantes querem fazer de uma qualquer cultura oprimida. São os empáticos e simpáticos naturalistas, que insistem em prolongar a existência dos seus vizinhos protegendo-os do tabaco, do álcool, do consumo de processados e de outros vícios. Ou, ainda, para ficar nuns poucos tipos, os conscienciosos veganos que, em nome da saúde do planeta, dos animais e dos humanos – nesta ordem –, sonham extirpar o milenar e prazeroso hábito de comer carne. A lista de justiceiros, fiscais e patrulheiros do bem viver é enorme, enorme e variada, pois há décadas são cultivados nas estufas escolares e, mais recentemente, legitimados e replicados nas redes sociais, todos certos de sua verdade e convictos de que a sua missão é reeducar a gente rústica que anda por aí.
A proliferação de tantos e tão tolos “donos da verdade” parece ser um sinal inequívoco de que criar artificialmente, nos bancos das escolas, um ser humano renovado, purificado das máculas do passado, foi uma experiência desastrosa. Mais umas das tantas evidências de que intervenções radicais e pretensamente redentoras na ordem social têm efeitos inesperados e, na maior parte das vezes, terrivelmente perversos. Já vai tarde, porém, o tempo das lamentações, mas por certo não é tarde para cessarmos de produzir em série esses indivíduos que, incentivados a desconhecerem e a desprezarem de onde veem e o que são, não fazem a menor ideia de para onde querem ir.
* Jean Marcel Carvalho França é professor Titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1999), “Visões do Rio de Janeiro Colonial” (José Olympio, 2000), “Mulheres Viajantes no Brasil” (José Olympio, 2008), “Andanças pelo Brasil colonial” (Editora da UNESP, 2009), “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII” (José Olympio/Editora da UNESP, 2012), “Piratas no Brasil“ (Editora Globo, 2016) e “Ilustres Ordinários do Brasil” (Editora da UNESP, 2018).
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