Mulheres dão à luz. O sentido desse evento tão natural, no entanto, é construído de forma cultural, pela troca de conhecimentos, conceitos e papéis sociais. Hoje, o Brasil assiste à emergência de um movimento que se propõe a discutir as práticas do nascer. A certeza sobre a melhor forma de parir, contudo, está longe de ser universal.
“O parto tem se transformado numa experiência de empoderamento. Hoje é possível à mulher construir para si a imagem de um corpo potente, capaz de superar as visões patologizantes construídas durante séculos por uma medicina que viu o corpo feminino como frágil e incapaz de dar à luz por si”, avalia Heloisa Regina Souza, pesquisadora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
A crítica ao parto excessivamente medicalizado resulta em uma campanha pelo parto normal, sem intervenções, seguido de críticas às mulheres cesariadas. “É importante destacar que a mulher não tem que parir naturalmente. Ela pode, mas não tem quê. Não se trata de impor uma nova regra de conduta para as mulheres. A problematização da cesariana não é regra. Muitas mulheres não sofrem posteriormente por essa experiência, enquanto outras buscam ativamente ressignificar e reparar a experiência vivida. Depende de como cada uma produz significados sobre o processo que viveu”, complementa Heloisa.
A psicóloga e doula Katya Montesano Bleninger tem outra opinião. Para ela, o parto é determinante na relação que a mãe estabelece com o filho. “Não dá mais para dizer que tanto faz a via de parto, que o importante é que nasceu bem e saudável. Para a mãe, parir é um ritual importante de passagem, é um marco da vida sexual da mulher”, defende (confira depoimentos nesta página).
No parto
Até o século 17, o parto era um evento domiciliar, familiar e fisiológico. A assistência ao parto existe há séculos e teve início quando as mulheres passaram a ajudar umas às outras e a acumular conhecimento sobre o processo do nascimento. O homem não era excluído, mas sua presença era incomum.
O cenário começa a mudar com a ascensão da medicina como ciência e com o entendimento do médico como autoridade. Como o acesso à ciência era privilégio masculino, as mulheres passam a buscar aconselhamento com médicos e não mais com mulheres. O século 19 é marcado por transformações profundas, como a urbanização, industrialização e higienização. Inicia-se, então, o processo de hospitalização da saúde, o que inclui também o nascer. O parto sai do foro íntimo e privado e passa à esfera pública e hospitalar.
Ciência da mulher
A patologização e a intervenção médica no parto estão relacionadas com a emergência da ginecologia e da obstetrícia como ciências no século 19. De acordo com Heloisa, a medicina voltada para a mulher construiu o entendimento de um corpo feminino fragilizado e destinado exclusivamente à maternidade e à esfera doméstica.
“A ginecologia e a obstetrícia, quando surgiram, exerceram um papel conservador, de tentar fazer a mulher retornar para o papel materno. Sair desse papel era visto como um comportamento patológico. O corpo feminino, compreendido como propenso a desordens variadas, reforçou a necessidade de medicalização, em especial na gestação e no parto. A medicina aderiu a um discurso científico justamente quando a mulher passou a reivindicar outros lugares que não o doméstico”, explica.
Ativismo materno
O movimento em defesa da humanização do parto não é exatamente novo. Começou na década de 1980, encampado por profissionais de assistência ao parto. A mulher passa a participar mais ativamente da discussão a partir da década de 2000.
Hoje, testemunha-se a emergência de um ativismo que busca o protagonismo da mulher no momento do parto. A autonomia aconteceria através do conhecimento sobre o próprio corpo, a gestação e o mecanismo do parto. “Investe-se no compartilhamento de saberes. É um momento de produção de conhecimento com maior participação da mulher”, observa Heloisa.
“No fim do dia, senti as primeiras contrações. Daniel e eu preferimos ficar um pouco sozinhos, nos concentrando. Já tínhamos montado a piscina na cozinha. O Daniel acompanhou o tempo todo, fez massagem, entrou na água comigo. Olívia nasceu, deu uma boiadinha e veio para o meu peito, não chorou, nasceu calma. Depois cortamos o cordão umbilical em um ritual de bênçãos e orações. “
“Há 30 anos, a gente não ouvia muito sobre parto de cócoras. Procuramos nos informar e decidimos tentar. Foi difícil porque não tinha preparo físico, era pequena, magra. Fiquei 15 horas em trabalho de parto. No segundo filho, decidi não inventar moda. Queria o parto normal, mas deitada. Foi o melhor. Dei à luz e três horas depois estava andando. Na terceira vez, quis cesárea. O médico era contra porque eu tinha condições de ter parto normal. Mesmo assim agendei. Acabei sofrendo muito mais por causa da anestesia. O parto normal é toda vida melhor.”
“Minha maior preocupação era o que fazer quando a bolsa estourasse. Sempre soube que seria cesárea. Meu pai era pediatra e obstetra e acompanhei o trabalho dele, escutei muitas mulheres gritando na sala de parto. Tinha medo do parto normal. A cesárea estava agendada para o início de outubro, mas a Luna veio antes. Senti muita dor durante as contrações. Achei a cesárea ótima, senti ela saindo. A recuperação foi rápida. Meu pai não quis fazer meu parto, mas ele ficou comigo. Entregaram a Luna para ele e ele a trouxe até mim, para o contato da pele. Meu pai me ensinou a ser mãe.”
“Pensei que fosse razoável querer entrar em trabalho de parto para então fazer a cesariana, mas o médico me assustou. Agendei. Meu primeiro parto foi rápido, asséptico, não tive descarga hormonal, não entrei em trabalho de parto. A cesárea é a única cirurgia que ninguém questiona; você simplesmente aceita. Na segunda gravidez, estudei sobre parto humanizado. Quis parto normal, na água, tive doula. Foi uma experiência diferente. Parir traz à tona todas as fraquezas e forças ao mesmo tempo. Te mostra a mulher que você é. Você descobre que tem um super-poder: o de pôr um filho no mundo apenas com o seu corpo e a sua força. “