“Um ponto preto no meio de uma grande toalha branca”, resume o advogado Nei Pereira de Carvalho, sobre o episódio ocorrido há um mês na fundação da qual é gestor, a Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, em Mandirituba – a 50 quilômetros de Curitiba. No final da tarde de domingo – 20 de setembro – uma discussão envolvendo quatro adolescentes ali abrigados resultou em ferimentos graves num deles – internado numa UTI – e a apreensão dos outros três em um centro de socioeducação (Cense). Um episódio dessa gravidade é inédito no local, em funcionamento há 22 anos.
Em 22 anos, mais de 800 meninos passaram pelo projeto. Dói ver o que disseram nos meios de comunicação sobre o ocorrido aqui. Criaram
uma fantasia.
A “chácara” – como é chamada – figura entre as mais importantes iniciativas latino-americanas no atendimento à infância e adolescência vulnerável e em situação de risco. Tem entre seus simpatizantes o argentino Adolfo Perez Esquivel, Nobel da Paz de 1980, para citar o decano de uma gorda lista de personalidades. Criada em 1993 pelo ex-frade carmelita Fernando de Góis, rápido o local se tornou exemplo de acolhimento de meninos que provaram da agressão, do abuso e do abandono. Apesar do perfil dos moradores, cenas de violência em escala de faroeste eram raras, mesmo na ocasião em que o abrigo chegou ao ápice de sua capacidade – 80 moradores. Hoje são 45, em obediência às novas diretrizes do governo federal para casas de acolhimento.
Fantasia
“Parei de ouvir o que estava dando nas rádios. Virou uma fantasia”, lamenta Carvalho, sobre o dia da forra. Inquilina, com honras, das páginas de cidadania dos meios de comunicação, em instantes a “4 Pinheiros” ganhou passaporte para as páginas policiais. “Doeu”, dizem os educadores, num momento em que a instituição goza de uma estabilidade financeira e administrativa jamais experimentada. Eles reprovam o que chamam de “tratamento impiedoso da mídia”, mas admitem que algo mudou no abrigo modelo do país.
“A chácara se tornou uma bomba armada”, diz Nei, ao tratar do atual perfil dos moradores. Parte dos adolescentes chega cada vez mais comprometida pelas drogas, além de mais escolados pelas ruas. Quando não, são filhos de pais dependentes químicos, dos quais precisam ser apartados, não sem sequelas emocionais. Vistas de perto, essas famílias se tornaram ainda mais infelizes, para tormenta dos 45 funcionários que se revezam na chácara de segunda a segunda, 24 horas por dia.
O cenário, concordam, é diferente do verificado nos anos 1990, quando o projeto surgiu. Mesmo entre os colaboradores fiéis, há quem não consiga admitir que os tempos mais românticos ficaram para trás. Na ocasião, os entorpecentes comuns eram os solventes e a cola, e não o crack,. A própria cidade de Mandirituba, escolhida para a sede por ser quase rural, hoje conhece o sentido da expressão boca-de-fumo, o que aproxima os adolescentes justo do que precisam se distanciar.
“A proposta da chácara continua a mesma. O problema é como conseguir que o morador nos ouça. O jovem que não tem mais tempo para ouvir, quer resultado imediato, está cansado de gente dizendo o que ele tem de fazer”, observa o pedagogo Eber Cristian Tartura, 33 anos,atual coordenador da fundação. Coube a ele a mais inglória das tarefas – substituir Fernando de Góis à frente do projeto. Foi instantânea a relação entre a saída do educador da direção e a fatalidade de setembro. Resta saber se há causa e efeito.
Extintor
Em fevereiro passado, Góis se despediu da “4 Pinheiros” e abraçou uma proposta tão visionária quanto: tornou-se morador de rua em São Paulo. Passa as noites na Rua São Bento, imediações da Praça da Sé. Durante o dia, divide-se: ora ampara os esfarrapados da Cracolândia, ora aplica a “Pedagogia dos Sonhos” – criada para os adolescentes da chácara – junto à população de rua, em uma ONG do bairro do Brás.
Nem um, nem dois, nem três previram o fim do projeto plantado na “4 Pinheiros” assim que Fernando calçou seu chinelinho, tornou-se andarilho e rumou para a metrópole, radicalizando sua entrega aos deserdados. Uma irmã Dulce de calças. De figura carismática, para muitos, próxima de um santo, dificilmente ele poderia ser suprido na obra que criou. Eis o ponto.
O próprio Fernando admite a fragilidade. Tanto que galgou substitutos. Nei e Eber são dois desses candidatos. “O Fernando é insubstituível, o que me dá tranquilidade. Não é a minha ideia pegar o lugar de ninguém. Sou mais um que chega para somar nessa história”, comenta Eber. Em coro com Nei, afirma que o ocorrido em 20 de setembro foi uma fatalidade. Poderia ter acontecido se Góis estivesse ali. “Os problemas de agora vinham se desenhando há anos”, admite Fernando, em visita à chácara, semana passada.
Sua chegada deu um intervalo para o clima de velório. Distribuiu abraços e palavras aos meninos, chamou-os à “Sala dos Sonhos”, ambiente na qual escrevem na parede e no teto os seus desejos de mudança. O que conversa com os guris não tem segredo: apenas lhes pergunta o que é preciso fazer para chegarem onde querem. A resposta demora.
“Os meninos podem desistir da chácara, mas a chácara nunca pode desistir dos meninos”, avisa, repetindo a máxima que fez da “4 Pinheiros” um sonho possível. Que assim permaneça.
Em que pé anda
Chácara padece falta de figura paternal de seu criador, mas avança no cuidado com a educação dos meninos
1 De um ano para cá, a fundação conhecida como Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros superou a administração amadora. A obra ganhou três imóveis em doação, garantia de recursos. O advogado trabalhista Nei Pereira de Carvalho arrumou o caixa – até então em desvario – e acertou os complicados plantões do projeto, que funciona em regime integral. Mesmo assim, nem sempre as contas fecham: cada menino custa R$ 2,5 mil para a casa, mas os repasses dos municípios patinam em pouco mais de R$ 1 mil, por morador.
2 “A chácara do Fernando salvou a vida de um bocado de gente, mas...”, comenta um antigo colaborador, ao observar que o modelo aplicado ali deixou de ser sustentável. Um dos pontos negativos seria a distância da instituição, plantada em um descampado, quase sem sinal telefônico, de difícil acesso para os pais dos abrigados. O isolamento – um desejo dos primeiros meninos, há 20 anos – contraria as diretrizes oficiais, cada vez mais refratárias a “peças originais”. Há “implicância” com o fato de não haver cerca no terreno, mas no ano passado apenas um adolescente fugiu do local. A tentativa de “normatizar“ a “4 Pinheiros” coloca os dirigentes em posição de resistência. “Tem abrigos fechando diante da eficácia da Justiça contra as ONGs. Os fiscais sempre mandam erguer mais uma parede. Às vezes, a criança está precisando de uma cueca e a gente tem de ir atrás de um extintor”, ironiza Eber Dartora.
3 Os meninos da chácara estão fora da idade e do perfil da adoção. Nesse sentido, a figura paternal de Fernando de Góis era essencial. Ele era voluntário e morava no abrigo em tempo integral. A presença de um pedagogo na direção, contudo, trouxe avanços no acompanhamento escolar. Ano passado, a fundação aprovou 75% dos meninos, que estão divididos em cinco escolas de Mandirituba. Esse índice caminha para ser maior em 2015.
4 Há controvérsias. A direção diz que tem dificuldade em organizar tantos pedidos de visita, de estágios e de parcerias. Observadores garantem que, com o distanciamento de Fernando de Góis, muitos amigos da chácara se apartaram, por acharem que se tornou “um abrigo como outro qualquer.”
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