Noite de sábado, 25 de março de 2006. Enrolado no cobertor, seu Pedro espia a novela das oito no saguão da rodoviária. De repente, surgem dois guardas municipais e o chamam para o albergue. Por onde passa, a perua branca vai recolhendo moradores de rua. O destino, porém, não seria o prometido. A van toma outro rumo e, já madrugada de domingo, chega à periferia de Curitiba. Ali os oito passageiros, todos mendigos, são lançados fora. "E agora", perguntaram. A resposta: "Se virem". Estava concluída mais uma etapa da limpeza social em Paranaguá. Tem sido assim há anos, segundo as próprias vítimas, que, teimosas, sempre voltam.

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Seu Pedro é um desses teimosos. Aos 56 anos de idade, venceu a pé os 100 quilômetros que separam Curitiba de Paranaguá. As feridas nos pés foram curadas pelo padre Adelir Antonio De Carli. Há dois anos, o responsável pela Pastoral Rodoviária tem observado o temor nos olhos de quem vive nas ruas. "Estão caçando essa gente como cachorros para expulsar da cidade", denuncia. Oito dos 11 indigentes ouvidos pela Gazeta do Povo disseram já ter sido levados à força para Curitiba ou Registro, cidade paulista na divisa com o Paraná. Padre Adelir também documentou em vídeo remessas de indigentes para Piraquara, Morretes e São José dos Pinhais a reportagem conferiu o material.

"Os guardas (municipais) agem sempre na calada da noite", diz o eclesiástico. Recolhem os moradores de rua e soltam em diferentes lugares, não sem antes impor o terror físico ou psicológico. Clodoaldo, um parnanguara de 41 anos, conta que certa vez o levaram até o Viaduto dos Padres, na Serra do Mar, na altura de Morretes. Jogaram os sapatos dele montanha abaixo e avisaram: "Se voltar, o próximo a cair pode ser você". O recado foi entendido, mas sem ter para onde ir, ele voltou. O castigo viria meses depois, de forma mais drástica. Clodoaldo sobreviveria à sessão de tortura no pau-de-arara. O amigo Miguel não teve a mesma sorte.

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"Tratam essa gente como bicho porque ‘sujam’ a cidade", diz o padre. Há uma preocupação em manter as aparências para os turistas, que nem são tantos assim. "Será que a melhor forma de mostrar serviço é esconder o problema no quintal do vizinho?", indaga. Isso parece não ser coisa recente. Pela imprensa local, o vice-prefeito e ex-secretário municipal da Criança e Desenvolvimento Social, Antonio Ricardo dos Santos, acusa outros municípios de enviarem mendigos a Paranaguá. E asssim, esses indesejáveis são empurrados de um lado para outro. A remessa de 25 de março foi a última de uma série que acontece há muitos anos, diz padre Adelir.

Eram 2h30 da madrugada quando os mendigos de Paranaguá foram largados no bairro Pinheirinho, em Curitiba. Seu Pedro e um amigo sexagenário passaram a noite na Praça Osório, no Centro da capital. De manhã começaram a descer a Serra. Só comiam quando encontravam uma boa alma nas banquinhas de frutas às margens da BR-277. Passaram a noite de domingo numa estrebaria. Seu Pedro só chegaria a Paranaguá lá pelas 20h30 de segunda-feira. Com platina na perna, o companheiro não resistiu às dores e parou no trevo de Morretes, onde disse morar um filho.

Dois passageiros da fatídica viagem de 25 de março responsabilizam Álvaro Domingues pelo acontecido. Álvaro é sargento aposentado da Polícia Militar e na ocasião era diretor da Guarda Municipal. Há duas semanas assumiu a Secretaria Municipal de Segurança Pública. Domingues recorre à própria história de vida para negar a suspeita. Há 20 anos é voluntário num programa de recuperação de drogados. "Não é de minha índole tratar assim os moradores de rua". No meio da entrevista, na prefeitura de Paranaguá, o prefeito José Baka Filho, surge para interceder em favor do secretário. E afirma: "Isso não acontece nessa administração".

No entanto, alguém está fazendo o serviço sujo de "limpar" a cidade. Histórias de agressões e despejo se multiplicam durante o jantar na casa 261 da Rua José Gomes. Ali fica a Comunidade Católica Filhos da Divina Misericórdia e Nossa Senhora Mãe dos Pobres, lugar onde os moradores de rua encontram café da manhã, jantar e palavras de compreensão. Foram 43 na noite da última quarta-feira, quase todos com relatos de violência policial e migração forçada. A casa é mantida com donativos da comunidade e o trabalho de 15 voluntários. Os mendigos preferem a casa ao albergue municipal, em cuja porta sempre há um guarda municipal.

• Por motivo de segurança, os nomes dos mendigos citados nesta reportagem são fictícios.

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