No dia 11 de dezembro, o ministro Alexandre de Moraes discursou no lançamento do programa Ruas Visíveis, voltado para moradores de rua, do governo federal, que tinha sido implantado por força de decisão do próprio ministro em julho, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976. A decisão do ministro atendeu a pedido de partidos e movimentos de esquerda: PSOL, Rede Sustentabilidade e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). O orçamento do Ruas Visíveis será de cerca de R$ 1 bilhão.
O episódio chamou atenção como exemplo marcante da crescente assunção pelo Poder Judiciário, no Brasil, de funções antes típicas do Poder Executivo, como definir prioridades da administração e planejar políticas públicas.
Na ação, o PSOL, a Rede Sustentabilidade e o MTST invocaram a teoria do estado de coisas inconstitucional, acolhida pelo ministro Alexandre de Moraes.
Originalmente citada pelo STF em 2015 para determinar a implantação de políticas para a população carcerária, a tese já foi, desde então, estudada pelo STF para ordenar mudanças na política de proteção do meio ambiente e vem sendo invocada por partidos políticos para finalidades ainda mais diversas, como a implantação de políticas raciais.
A tese não foi criada pelo STF: foi originalmente adotada em 1997 pela Corte Constitucional da Colômbia, que, segundo juristas, é considerada expoente do ativismo judicial e é frequente pioneira de teses inovadoras no contexto latino-americano.
O que é o estado de coisas inconstitucional?
Pela concepção jurídica tradicional, as constituições são textos destinados a disciplinar o Estado, e não a sociedade. Assim, uma lei aprovada pelo Legislativo ou uma política implantada pelo Executivo poderiam ser inconstitucionais, mas não poderiam ser considerados inconstitucionais fenômenos do mundo situados fora do Estado, como desastres naturais ou mesmo fenômenos sociais complexos, como a pobreza ou a desigualdade.
Num desvio desta ideia, a tese do estado de coisas inconstitucional sustenta que, se o texto da Constituição prevê direitos positivos como a “dignidade da pessoa humana” ou o “direito à saúde”, caracteriza um “estado de coisas inconstitucional” o fato de existir, no mundo dos fatos, descumprimento dessas metas – ou, na formulação do STF, um “quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária” (ADPF 347).
O que a tese implica é que, mesmo que todas as regras formais aplicáveis à conduta do Estado estejam sendo cumpridas, os juízes podem exercer controle judicial sobre o resultado. Se for considerado insatisfatório, podem ordenar diretamente mudanças de política pública com vistas a atingir os fins almejados – tarefa que, na concepção tradicional da separação dos poderes, seria função típica do Executivo.
Aplicação ao “racismo estrutural”
A tese do “estado de coisas inconstitucional” pode estar prestes a ser adotada novamente pelo STF na ADPF 973 (apelidada de “ADPF Vidas Negras”, em referência ao movimento americano Black Lives Matter), atualmente em processo de julgamento.
Na ação, PT e PSOL pedem que o STF reconheça estado de coisas inconstitucional constituído por um “racismo estrutural” na sociedade brasileira, sobretudo no tocante à saúde, alimentação e vitimização pelo crime (áreas em que a população negra aparece em situação estatisticamente mais desfavorável que a não negra).
Consequentemente, os partidos reivindicam também que o STF ordene ao Estado a “adoção de políticas e medidas de reparação” para a população negra.
O que é o racismo estrutural
“Racismo estrutural” é um termo acadêmico e político associado a correntes progressistas. Sua premissa é a de que as fundações de certa sociedade (inclusive suas regras e procedimentos) foram construídas de forma que desfavorece uma ou outra raça em prol de outras, mesmo na ausência de crenças ou comportamentos preconceituosos dos indivíduos que compõem essa sociedade – o chamado “racismo individual”, conceito que é frequentemente contraposto ao primeiro.
Os defensores da ideia frequentemente interpretam estatísticas de desigualdade de resultado como prova suficiente da existência de um racismo estrutural, mesmo na presença de regras procedimentais que impossibilitam a discriminação individual (como no caso de testes cegos de seleção).
A tese se assemelha à do estado de coisas inconstitucional, na medida em que a conformidade à moral, à lei ou à Constituição não é medida pela aderência a regras na prática dos indivíduos ou do Estado, mas apenas pelo resultado material, se for discrepante em relação ao ideal que se adota como meta.
Do ponto de vista legal, no Brasil, “racismo” é atualmente um termo técnico-jurídico que designa um crime previsto na Constituição e na Lei nº 7.716/1989; portanto, aplicável apenas a condutas individuais.
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